Críticas

Chulos | Dual Cena Contemporânea

Inspirada nas Folias de Reis, “Chulos” da Dual Cena Contemporânea leva para a rua um espetáculo que articula o complicado espaço entre o popular e o cênico. Dominada pelas cores, pelas formas, pelo visual, a obra cativa, prende o olhar, e faz pensar sobre possibilidades dessa articulação.

O retrato de festas populares não é assunto novo na dança. Presente desde o início do balé clássico, mistura um tanto de deslocamento com um tanto de reconhecimento: de um lado, aproximamos certas formas culturais de públicos que talvez não as conheçam, ou que talvez não reconheçam nelas o valor estético e artístico; por outro lado, as ocasiões que sustentam os festejos são transportadas para espaços cênicos que com elas não compartilham nenhuma relação — na festa, o interesse é a integração do grupo, enquanto na cena, há uma categórica separação entre quem faz e quem assiste.

Transpor essa dificuldade da separação é um desafio recorrente nas obras que não desejam apenas fazer alguma forma de retrato do visual do evento que as inspira, mas, principalmente, abordar aspectos maiores de suas referências. Tentando responder a essas questões, a Dual Cena Contemporânea propôs seu espetáculo “Chulos” como uma obra feita para a rua. Espaço justo de integração entre o tema e a proposta executada, apresentar na rua faz sentido porque a obra se inspira nas Folias de Reis, que têm um elemento de cortejo, especialmente bem construído pela proposta de um percurso inicial na obra.

Nesse percurso, somos levados até o lugar onde de fato ocorre a Folia. O resultado é extremamente interessante nesse primeiro momento, mas vai se tornando mais desconfortável com o passar do tempo, numa obra razoavelmente longa para ser assistida em pé, debaixo do sol. Esse desafio do ambiente não é restrito ao público: os intérpretes precisam, muito mais, lidar com a fisicalidade, junto dos figurinos e de toda a ação que é colocada em cena. Mas transparecem problemas de progressão, talvez da própria elaboração dramatúrgica, talvez da especificidade da realização, e a obra anda por vezes bem depressa, e por outras mais arrastada, como se enfrentasse dificuldades técnicas — e talvez, realmente, enfrente: a rua é, em si, um espaço de imprevisibilidade.

A proposta é cativante. As cores, a música ao vivo, a coreografia acrobática, as máscaras,  o figurino que passa por grandes mudanças dentro da cena — todos esses são elementos que seduzem o público, que despertam a atenção, que dão aos passantes a vontade de parar para ver aquilo que se apresenta e que acontece. E realmente, isso se dá, e as pessoas pela rua param para observar, mesmo que brevemente, aquilo que acontece.

Essa é a estrutura melhor pensada da obra — seu aspecto de sedução dos transeuntes desavisados, que se tornam, temporariamente, público espontâneo. Do outro lado da moeda, para quem vai assistir à proposta, a insistência e a repetição de suas estruturas e aparências pode pesar para o cansativo. Especialmente por se tratar de uma obra longa, e de difícil compreensão. “Chulos” parece demandar um conhecimento prévio, dedicado e específico da Folia de Reis para ser completamente apreciada.

Do contrário, acompanham-se as cores, o movimento, um tanto do som (um tanto, porque há letra demais para um espetáculo de rua, e boa parte do que é falado / cantado se perde no movimento do ambiente), mas fica uma grande dúvida de o que está sendo apresentado de fato. Aqui, um retorno à questão das festas populares. Ensinadas na tradição, os membros de uma cultura sabem o que elas são, sabem a que elas se propõem, e são ensinados, na prática das coisas, a participarem delas. Aqui, na versão espetáculo, nada se aprende de fato, e ainda que sejamos cativados, não fazemos, nem faremos, parte daquilo que nos é mostrado. Essa é a palavra chave, diferente das festas populares, que integram, o espetáculo mostra.

Lidar com esse interstício é um desafio. Mas é um que aparentemente a Dual se coloca, porque há traços de um desejo de interação, sobretudo na persistência de um certo humor — os palhaços são figura tradicional das Folias de Reis, mas em “Chulos”, seu lado cômico é restrito a piadas situacionais fracas, a uma comédia de gesto e palavras entreouvidas que não se realizam completamente. O resultado marca o tom infantil, que é, em si, um risco recorrente nos trabalhos com tradições populares — que podem ser inocentes, podem ser algo de naïf, mas não são, de fato, infantis.

O lado infantil também pesa ao final do espetáculo, que carrega um tanto de conscientização social, num quase-rap difícil de ser ouvido, pouco rítmico, em que se destacam palavras de ordem soltas para tratar do que, ao imaginarmos como se completaria aquilo que ouvimos, parece ser uma análise do Brasil e de sua situação atual. Tema que é justo e importante, mas que não se encaixa na solução cênica apresentada, ficando apresentado como momento separado, avulso da obra.

A movimentação se apoia no caráter acrobático dos palhaços, mas, se a fisicalidade é o interesse, ela poderia ser ainda mais trabalhada, em matéria de constância e continuidade — as muitas pausas e interrupções, que atrapalham a percepção do andamento da proposta, também atrapalham a percepção da técnica corporal, que ganha instantes grandiosos e outros em que desaparece. É difícil, porque a situação na rua não ajuda essa possibilidade, aumenta o desgaste e exige muito dos intérpretes. Mas trata-se de uma escolha feita pela companhia e para essa obra, e que precisa ser levada em conta enquanto tal.

Ainda que os elementos da Folia de Reis estejam presentes e sejam trabalhados, o perigo de “Chulos” é agradar os olhos e só fazer sentido, realmente, para conhecedores. Essa seria uma possibilidade de trabalho — usar as referências populares enquanto forma, enquanto visual, enquanto técnica, e não enquanto conteúdo tangível. Mas não parece ser esse o propósito que a companhia se estabeleceu. Nesse sentido, falta dramaturgia entre a proposta e sua realização, para que “Chulos” ultrapasse o visual já bem construído pela Dual e encontre a costura para um evento que de fato consiga a difícil tarefa de lidar com o popular, com a tradição, e com o cênico. Mantendo essa metáfora de costura, mesmo que falte um tanto de alinhavo entre as as peças e partes apresentadas, o que se vê muito claramente é a qualidade do corte, da composição do tecido e de sua estampa. Um bom exercício, e uma realização cativante, que pode marcar continuidade para explorações e desenvolvimentos ainda melhores pelo grupo.

 

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