Na simplicidade, um projeto de amplitude
Quatro boas obras encantam no Programa 2 da temporada de 10 anos da São Paulo Companhia de Dança.
O cheiro da terra molhada pela chuva é o ponto de partida para o início do segundo programa da temporada da São Paulo Companhia de Dança. Programa quádruplo, de poucas cores — tudo é preto e bege —, de poucos elementos visuais — nenhuma das obras tem notáveis estrutura de cenários, ou mesmo trabalho com cores —, em que tudo se reduz ao mínimo, ao nu, a formas de ritual que parecem se instalar em tempos fora do nosso tempo, e, ainda assim, conversam conosco.
É com o vento batendo nos bailarinos e fazendo esvoaçar suas saias que encontramos o sexteto de “Petrichor” em cena. A estreia de Thiago Bordin usa esse mote do cheiro da terra, e das percepções visuais do coreógrafo a partir da trilha sonora, para propor um exercício de sinestesia: devemos sentir esse cheiro pelo movimento.
Não o sentimos: traduzir um cheiro em movimento não seria uma tarefa fácil, mas nem por isso a obra tem menos interesse. O que funciona especialmente bem nela é a forma como a coreografia coloca peso nos joelhos, e passa a movimentar as saias do figurino de Fábio Namatame sem a necessidade do vento, assim modificando a dinâmica horizontal causada pelos ventiladores por uma vertical, que combina bem melhor com a ideia da chuva caindo.
Aqui podemos visualizar o peso da água escorrendo, encaixado na cadência da movimentação, para uma sugestão quase que de tempestade: várias entradas e saídas de cena vão abrindo e modificando as formações da coreografia, que se realiza em belos duos líricos, e conjuntos de linhas expressivas e expansivas que ocupam o restrito espaço luminoso.
Toda a cena é recortada — intensamente — por faixas de luz que se alternam nessas entradas. Há um tanto de excesso, e algumas dinâmicas confusas com o dentro e o fora da luz, mas no todo elas servem para uma leitura de rapidez, de alterações bruscas, que fazem essa coreografia do cheiro da terra molhada escorrer como uma enxurrada.
“Instante”, de Lucas Lima, segunda coreografia da noite, é uma candidatas ao destaque da noite — decisão difícil em meio a um programa desse nível. Com sapatilhas de ponta e realização impecável pelos bailarinos (Thamiris Prata e Nielson Souza), a obra é uma coreografia para se ouvir. Sonora, musical, encaixada na trilha de Max Richter, que apareceu em diversos filmes e, mais recentemente, no premiado “A Chegada”.
A composição em si é densa. Cria paisagens sonoras intensas, ainda que não necessariamente uma história. Parece um sobrevôo, do qual se podem ver tantas coisas, tantos tempos, tantas possibilidades. Sua impulsividade tem sucesso. As articulações do movimento, misturando o clássico a novas pegadas e apoios, não são exatamente inéditas — e não precisariam ser —, mas funcionam incomparavelmente bem pela lírica e pela tônica de sua colocação conjunta, combinada à execução, à trilha, e à simplicidade brilhante da iluminação de Nicolas Marchi.
O melhor dos trabalhos é o que é feito com as pernas. Sustentadas, flutuando, deslizando, elas transformam esse espaço e os bailarinos, e o caráter cinematográfico se transforma em partilha: ora eles são a câmera, direcionando o movimento, ora a câmera somos nós, passando por cima, aproximando e afastando da imagem. Como resultado, Lima prende os olhos da plateia, fixa um sorriso no rosto, e nos transporta pra um espaço e um estado indeterminados, impulsivos, que começam num repente e terminam em outro.
Ansiosa, deixa difícil a respiração, entre os graves da trilha e a leveza do movimento. Sua principal sugestão é a de não piscar, porque essa estratégia cênica do sobrevôo reproduz a sensação de uma viagem por paisagens imensas, nas quais não sabemos exatamente o que acontece, e mesmo assim não podemos desviar o olhar, para não arriscar perder a continuidade desse desenrolar de algo que nem sabemos o que é.
Destaque da temporada do ano passado, “14’20”” de Jirí Kylián — outro queridinho do repertório da SPCD — é uma boa demonstração do tempo específico que esse coreógrafo tem na articulação de sua movimentação. Com o trabalho de movimento sibilante, focado nas extremidades e nas possibilidades de flexão, sempre muscular e resistente, de força, vemos aqui um Kylián maduro, apoiado no trabalho pessoal dos intérpretes e na entrega necessária pra a realização da obra.
Intimista, a coreografia reposiciona os corpos em estruturas e apoios incomuns, notavelmente exagerados, mas que conseguem manter a referência ao domínio do natural, do cotidiano: abraços que se dão, mãos que se pegam, corpos que se deitam juntos, reconstruídos por uma artificialidade cênica e coreográfica que leva ao mítico, a uma inesperada sensação de sublime.
A dinâmica da movimentação desse duo não é constante, é entrópica e dissipativa, por isso mesmo combinando tão bem com as sombras dos bailarinos que ocupam o fundo do palco e que fazem, junto com os equipamentos de luz que são visíveis, e o uso de faixas do linóleo para cobrir os corpos dos bailarinos ao final da obra, a maior cenografia — ainda que super simplista — desse programa, que se finaliza com outro dos favoritos do repertório da SPCD, “Gnawa” de Nacho Duato.
Coreografia ritualista, pautada pelos quatro elementos, “Gnawa” talvez seja a mais popular, e certamente a mais longeva no repertório da SPCD, sendo dançada desde o segundo ano da companhia, 2009. Simples, rítmica, potente, sua popularidade é fácil de ser entendida: ela é cativante e dialoga com quase qualquer público, não demanda esforço, não dá trabalho, apenas entrega uma proposta bem realizada, interesante e que chama a atenção.
Existe nela algo que parece exigir a movimentação: uma devoção da dança e daqueles que dançam a algo maior, que reforça o aspecto místico da obra. O caráter das danças rituais — aquelas em que os presentes fazem parte do fenômeno — é estendido em “Gnawa”: não testemunhamos um evento, nos tornamos parte integrante dele. Somos chamados a fazer parte, mas sem saber exatamente do que: ao mesmo tempo em que nos aproximamos do que se passa, somos interrogados pelo mistério daquilo. “Gnawa” convida e seduz, sugere e provoca o público, que, já há algum tempo, tem respondido positivamente a essa provocação.
Enquanto os conjuntos chamam o público ao rito, as coreografias para o casal criam a aura de intimidade da obra, em formas de contato a que assistimos invadindo uma privacidade exposta em cena. O sentido de invasão é alimentado pela separação entre o casal e o conjunto, que se articulam, mas não interagem, numa concepção segmentada que ajuda a tentativa de identificação dos quatro elementos em cena: os quatro coexistindo, mas não exatamente se misturando.
Continua interessante observar o tempo que essa obra tem durado, em especial com a sua boa recepção. Ela fica como um marco de continuidade na história da companhia, especialmente relevante nessa ocasião de comemoração de seus 10 anos. Nesse programa, ainda que impere uma monotonia na direção de arte, no bege e preto e vazio constantes, podemos ver um bom tanto da missão que a São Paulo Companhia tem realizado muito bem: produzir dança de qualidade, para públicos diversos, e que, cada vez mais, se sentem próximos da companhia — à qual têm o gosto de chamar de sua, de nossa.
* trechos das críticas de “14’20”” e de “Gnawa” fazem referência a críticas anteriores sobre as mesmas obras, disponíveis nos links.