Em meio ao caos da cidade, o corpo se torna menos: algo que mistura prédios e asfalto com um tanto do sujeito e quebra a sequência lógica, a corrente da continuidade e de existência de um copo em seu espaço e tempo. Ou, pelo menos é isso que a T.F. Style Cia de Dança parece nos mostrar em seu espetáculo “Carne Urbana”, dirigido por Igor Gasparini.
Em uma cena aberta que convida a plateia a participar, de certa forma, da obra, encontramos uma dramaturgia de protocolo: a coreografia parte de um acordo de sequências de momentos e de suas ações, pautados pelo silêncio das pausas de movimentação do elenco, e preenchido de alguns módulos coreográficos que trabalham em referências mistas, sobretudo a partir de danças urbanas, de grandes passagens de chão contemporâneas, e uma enorme quantidade de exercícios de bandeja — com os bailarinos andando pelo espaço e ocupando-o —, em meio à plateia transformada em cenário.
Trata-se de uma tradução primordial, mas também primária, do espaço urbano e sua super-ocupação dinâmica. A constância desse tipo de construção, esteticamente, no mundo e nas reflexões sobre a cidade, aqui leva a aglomerações que se transformam em bolos, massas de copos que perdem a distinção e a individualidade ao se fundirem, adotando até a mesma respiração.
A plateia que se aventura mais adentro da cena — na qual somos convidados de certa forma a intervir — fica presa na posição incômoda de se tornar espetáculo, em um efeito colateral da proposta da obra. Ser assistido pode ser um desejo, as vezes até reprimido, mas não é (ou não deveria ser) o motivo para o público sair de casa para uma apresentação.
O que explica essa proposta é sua nomeação de instalação coreográfica, a partir da qual vem a pergunta acerca de que dinâmica é aqui proposta com o espaço, e o que pode fazer dessa obra uma instalação — algo que seja diferente de uma outra obra não-instalação de dança. Não se trata de limitar a definição ao uso do espaço partilhado com a plateia, que não é exatamente novidade, nem instalação. A fórmula aqui é a de uma pseudo ativação. Pseudo porque de fato não influenciamos tanto assim na obra, enquanto público. Não é ação do público que faz a obra funcionar ou deixar de funcionar, que constrói e reconstrói suas dinâmicas, ou que faz com que os módulos e protocolos aconteçam. Há, no entanto, um processo oposto de ativação: não o público que ativa a obra, mas a obra que ativa o público.
A dinâmica da obra propõe a reflexão da nossa inserção na cena através da artificialização de um processo que se encontra em princípio no natural no corriqueiro, no cotidiano — mas que é a matéria e desejo de discussão desse grupo. Se eles olham para espaço urbano e vêem o quanto ele nos molda, a resposta encontrada para fazer-nos sentir a força e o efeito desse mudar vem na colocação do público em meio ao palco, em meio as luzes e o calor incômodo que constroem o ambiente desagradável da cena partilhada.
Na balança, a perigosa questão do elemento que é feito para causar incômodo ou que desconsidera a experiência do público — e o efeito que esse desagrado pode ter, traduzindo-se em indisposição. Ainda que aqui esse efeito pareça honesto e real frente ao objeto sobre o qual se reflete, numa obra que se propõe dependente da disposição da plateia, como é o caso dessa, é sempre arriscado trabalhar o público a partir de sua indisposição.
Esse processo, encadeado pela perspectiva que temos a partir de dentro da obra se reflete em um pedido que na verdade é uma necessidade de disponibilidade da plateia: a obra não é visível em plano aberto, e será vista apenas a partir de nossas interferências, de nosso posicionamento, de nossa disposição ou indisposição para nos movimentarmos pela cena — e guiada pela tendência natural de que o olhar se fixe naquilo que está exatamente em frente, seja isso obra ou público distraído, a menos que algo chame atenção para as laterais. Por vezes, a atenção é chamada, e passamos a seguir uma cena — mas o incômodo das luzes mantém o risco de cortar o momento —, o que ocorre especialmente quando é possível ver, na interpretação de alguns membros do elenco, o sucesso dos trabalhos com as técnicas corporais que aqui são propostas.
Porém, dentro desse tema que se dirige a uma espécie de anulação ou negação, de uma continuidade quase mecânica ou automática pela sobrevivência, o palco nos traz uma cena em que pouco acontece. Nessa proposta, cativar depende fundamentalmente de elementos que não têm a vantagem dos grandes gestos ou dos grandes feitos, restringindo-se a olhares e tonus dos intérpretes. Alguns serão incrivelmente potentes — e se estivéssemos em alguma outra disposição espacial, talvez não tivéssemos a oportunidade de encontrar a luz e de dividir com eles o momento de confidência que é partilhada pela cena. O que eles nos contam, no entanto, para além do “somos todos algo do mesmo”, permanece em segredo.
Misturando trilha sonora e paisagens, a ambientação da obra é interessante por suas múltiplas referências, que a um tempo adicionam a um pitoresco, e impedem a determinação de um espaço de origem. O mesmo se dá pelo figurino, de jeans e blusas de meia-calça rasgadas e em amarras: estamos em qualquer lugar, estamos em todos os lugares.
No conto da pós-modernidade, o corpo urbano não é específico. Ele é genérico e até impessoal, impermanente, descolado do espaço, do tempo, do indivíduo, do propósito. Ressurge, então, a dominação do instintivo e do animalesco: um chamado neoprimitivista. Entre o aspecto no geral sóbrio e até sombrio do elenco, vai se mostrando a mensagem-chave da obra: só os conjuntos conseguem escapar do esvaziamento e da naturalização que o espaço urbano imprime sobre os corpos, como se fossem grafite: ao mesmo tempo destacando e apagando um prédio. Só em grupo, e só em instintos, os indivíduos desconfigurados pela selva da cidade encontram sua carne.