Críticas

Como harmonizar um menu?

“À la Carte”, da Cia Fragmento, nos oferece opções de entradas, pratos e sobremesas, para o público escolher como montar a sua refeição. Nem sempre harmonizadas, encontramos no cardápio opções saborosas, por vezes soterradas entre canapés.

A pesquisa da Cia Fragmento de Dança sobre dança depoimento em contagem leva a criação do espetáculo “À la Carte”, dirigido por Vanessa Macedo, que transforma público em povo, e povo em eleitores para a construção de um menu coletivo de pratos de dança. Entrando na sala somos recebidos por um cardápio que nos dá nossas opções de entradas, pratos principais, e sobremesas, dentre as quais devemos escolher em conjunto aquelas que serão apresentadas.

Em uma longa cena inicial, temos uma mestre de cerimônias que organizar a montagem do cardápio. A cena se apoia no interesse desse sistema co-participativo de apresentação, mas se apoia nele excessivamente, tornando-se uma parte considerável dentro do todo do espetáculo, que tem outros problemas de organização de seu tempo e andamento.

Com um cardápio que inclui duas opções de entrada, três pratos principais, e duas sobremesas, são diversas combinações possíveis para uma refeição de três etapas, o que faz o espetáculo variável a cada récita. No entanto, a forma como os pratos são apresentados — com títulos bastante elaborados, e descrições de seus componentes entre o sutilmente referencial e o aleatório — arrisca causar preferências insistentes, se não imediatas, entre os diversos públicos da obra. Tentando evitar a monotonia, parece que a mestre de cerimônia discretamente, mas nem tanto, nos dirige ou sugere algumas das seleções.

Dentre as duas opções entrada, “Borboletas do Brasil causam furacão no Texas” e “Selfies matam mais que ataques de tubarões”, a plateia em que estive escolheu a primeira opção. Nela, encontramos um serviço misto de canapés, que, perturbadoramente para metáfora do jantar, dura o dobro do tempo da coreografia do prato principal (que, com isso, já aparece menos principal), ou da sobremesa.

A estrutura dessa cena é a da reconstrução das poses de fotografias de infância, permeadas de reconstruções orais das memórias a elas associadas. Entre essas memórias do elenco são inseridas imagens de outras infâncias, como a da criança síria afogada na praia, ou uma criança sendo passada de um lado a outro de uma cerca farpada. Algumas dessas imagens são reencenadas junto das memórias pessoais. Num segundo momento, a aceleração da projeção contínua das fotos criar um módulo coreográfico dos bailarinos passando de uma a outra posição, que nos coloca numa exibição slides vivos.

Surge uma reflexão possível sobre o privilégio das experiências de vida e de infância da plateia, e dos intérpretes, sutilmente sobreposto pelas situações de infância das quais não partilhamos, mas às quais temos acesso através das fotos que são mostradas. Essa progressão se transforma em dispersão em um terceiro momento, trabalhado a partir de alguns dos signos e formas das imagens apresentadas, que coloca os bailarinos em um conjunto de confusão, o qual experimentamos como dispersão.

Aqui, o conjunto dos figurinos que já causavam algum estranhamento, passam ao incômodo, sem conceito perceptível ou razão de ser. Segue-se, no quarto momento, uma sequência de depoimentos, um deles em italiano. Simpática estratégia da pesquisa acerca do depoimento, é algo ainda questionável enquanto contágio e comunicação: sua transformação em dança não está completamente resolvida, e fica sendo preciso parar a dança para o depoimento, e o depoimento para a dança, ambos convivendo com pouca eficácia.

Finalmente, depois de quase uma hora de refeição, chegamos ao prato principal. Com a barriga cheia de canapés, nem todos eles grande sabor, fica mais difícil poder apreciar o prato principal. A plateia escolheu o terceiro prato da lista, “Briga que dói menos”. Diferente da cena anterior, de variados canapés, aqui realmente há um prato, substancial, denso, bem trabalhado, e de sabor interessante. É uma cena realmente coreográfica (no sentido mais estrito do termo), notavelmente associada ao seu título, e tratando da violência em relacionamentos. Bem interessante, é uma obra parte, colocada dentro de várias das tendências atuais de movimentação e estrutura coreográficas.

O choque entre as obras/pratos leva a questões: existe harmonia e progressão no conjunto dessa refeição? Precisa haver? Mesmo se não tivermos algo para limpar o paladar entre os pratos?

A sensação que governa é a do erro de harmonização. Estamos responsáveis, as escolhas foram nossas. Mas são escolhas que se fazem às cegas. Deixar o público escolher entre partes, quando elas não se encaixam exatamente, não transfere (nem pode) para a plateia a responsabilidade dramatúrgica da obra. Pelo contrário, evidencia a necessidade de cuidado na construção das opções desse cardápio, para que ele faça sentido não só enquanto itens, mas enquanto uma refeição: porque é isso que a estrutura proposta para obra nos promete, e arrisca não entregar.

Nessa segunda cena, a trilha sonora, percussionada ao vivo, dá ritmo, pulso e fôlego à obra, além de adicionar uma questão transformativa com a troca dos intérpretes, que ora dançam, ora tocam. As trocas são perceptíveis, e ainda mais interessantes por isso, porque são bem integradas ao todo da cena, mesclando a força sequencial ritmada e brusca das batidas, com as escapadas mais leves que às vezes surgem na movimentação.

Com a trilha, há uma fuga do lírico, que até consegue se infiltrar na coreografia, mais lânguida, mas o som corta e abate esse tom, fazendo algo de permanentemente visceral e ameaçador. O prato principal é delicioso, mas dura apenas 10 minutos. E aí nos convencermos de que esse se trata de um jantar de aperitivos. Enche a barriga, mas com pouca sustância.

A sobremesa, “Não tem revolução se ninguém pode gozar“, nos dá os bailarinos vendados, se buscando pela cena. Eles vão se encontrando, pareando, formando casais e respirando e gemendo pesadamente. O protocolo parece partir do ocasional: quem se encontra se encontra, e quem não se encontra, não. E assim formam os casais, deixando dois perdidos, sozinhos em meio à orgia orgasmática: e seu desencontro é poético e belo. A cena é simples, pontual e rápida. É uma boa sobremesa: pequena e delicada, mas densa, com impacto e sabor.

O principal problema de “À la Carte” é a estrutura que a obra propõe para si. Não por que ela seja ruim — na verdade é bem interessante, e funciona como um convite para voltarmos a ver outras apresentações —, mas uma estrutura tão delimitada por sua alegoria cria expectativas específicas, e que não são realizadas. Esperamos do jantar progressão e harmonização, e nenhum dos dois nos é entregue. A impressão resultante é de ingredientes, não de pratos, muito menos de refeição.

Vemos vários desses ingredientes ali, disponíveis, bem colhidos, maduros, saborosos. São bons em si, mas não necessariamente fazem sentido nessa proposta, e na forma como são cortados, preparados, e servidos. Aqui, o fundamental é que a proposta não seria necessária. A estrutura é um artifício, e esses elementos não precisam de artifício. Mantendo a metáfora da refeição, é como se fossem apresentados todos juntos numa bandeja cheia de decoração, enfeites, divisórias — quando tudo que eles precisavam era de algo para limpar o paladar, e um prato branco, simples e limpo, que deixasse observamos mais aquilo que se serve, e menos a forma como ele é servido.