“Foreign Body” é uma obra que se lê como se fosse texto. Não por um aspecto linear ou narrativo — ela não é nenhuma das duas coisas —, mas por sua característica documental, ao mesmo tempo coletiva (tratando de uma percepção social) e individual (priorizando a experiência do indivíduo, que frequentemente se apaga com a massa e as estatísticas).
Fugir das estatísticas pode ser uma proposta cênica, mas é uma fórmula de existência e de resistência de muitas pessoas. Especialmente aquelas em situações marginalizadas. É um desses grupos que Clébio Oliveira discute e leva à cena nessa obra.
Quase permanentemente de costas para a plateia, ele vai lidar com o revelar / esconder / descobrir / aceitar a identidade (no caso, de gênero), questionada desde sua primeira cena, em que pergunta num megafone “qual é o seu verdadeiro nome?”, passando muito rápido da indagação para o questionamento, desse para a desaprovação, e dessa para a ameaça, consumada no palco por uma lista de pessoas trans mortas.
Ele está de meia-calça e sapatos altos, que criam uma sonoridade importante, especialmente quando rangem, num efeito que se multiplica por seu corpo, que é explorado, tocado, machucado e torturado. Sua cena é a do tornar-se alguém, uma forma de parto de si mesmo, o que mistura glória e sofrimento. Não só nascimento, mas também morte — a mesma que ameaçadoramente domina a obra, num indício e lembrança constantes de perigo: é arriscado ser quem você é, quando quem você é não corresponde a certas expectativas e normas.
Uma existência questionada é uma existência em constante descoberta e reafirmação. E é assim que Oliveira lida com seu corpo em cena. Ele não discute processos específicos ou histórias, mas, incomparavelmente, coloca em cena o jogo do se revelar, do se encontrar, do se mostrar.
Um longo solo, inteiro de costas, é o tipo de proposta com potencial para entediar ou cansar seu público, mas não é o caso. Aqui, a interpretação é do tipo que cativa e intriga. Multifacetada, atenta, um deslumbre técnico, mas sem efeitos de virtuose. Há, sim, feitos coreográficos, como os trabalhos com os pés, sobretudo numa sequência feita com os calcanhares dobrados no chão como se estivessem quebrados.
O fundamental, é que o tamanho da delicadeza e fragilidade do mundo que ele constrói traça um paralelo com a fragilidade do mundo em que essa existência se insere, e que vemos aqui frequentemente vibrando, tomado não se sabe se de êxtase ou de medo.
Perigosamente, ele desliza entre poças de água pelas bordas do palco e se arremessa contra a parede. A violência do questionamento, a violência e a solidão da descoberta e da construção do indivíduo são atravessadas pela violência física da incompreensão, e da eliminação.
Em vários sentidos, “Foreign Body” é uma espécie de “A Morte do Cisne” — sutil, anti-virtuoso, pautado em técnica pesada e precisa, completamente dependente de uma realização de estrela. Em um outro sentido, são completamente distintas: o cisne é instintivo, sabe que a morte se aproxima e canta sua última cena. O corpo em cena é concreto, é resultado de anos de experiências traumáticas e diversos níveis de descaso e injustiça social. E, ainda assim, permanece. Porque não há outra alternativa além da realidade — mesmo quando a realidade pessoal enfrenta e desagrada uma expectativa.
De costas, um corpo se toca, se bate, se descobre, se desgosta, se experimenta, se assume, se transforma, e resiste. Questiona a sua pele e sua percepção. Um dia estrangeiro a si mesmo. Outro dia estrangeiro em meio aos demais. Ele é seu próprio território e desafia convenções. É horrivelmente repreendido por isso, mas nenhuma repressão pode mudar quem ele é.