Críticas

Do enfrentamento ao encantado

Com Encantado, a Lia Rodrigues Cia de Danças avança em suas obras de transformação, num tom um pouco mais leve e menos enfrentativo, que foca o encantamento, e seduz.

Encantado, recente estreia da Lia Rodrigues Cia de Danças, dá continuidade ao trabalho de pesquisa estética do grupo calcado na transformação, no cerimonial. Se em Para que o Céu Não Caia (2016), o foco parecia se voltar ao desejo do que se quer causar no mundo, e em Fúria (2018) o que dominava era a violência do ritual, aqui chegamos a um ápice, com o olhar que se volta para os efeitos dessa magia, para o encantamento — individual e social — como um ponto, não final, mas de transmutação.

A estrutura da obra mantém a percepção do acúmulo, do crescendo, e faz questão de nos mostrar o passo a passo dos seus ritos, iniciando com uma longa cena em que bailarinos abrem sobre o palco um rolo de 140 cobertores, que vão formar o cenário e, na sequência, o figurino desse trabalho, todo construído no momento, entre posições e amarrações dos cobertores, numa estrutura realmente interessante para o olhar.

O acúmulo dos cobertores constrói florestas de estampas, em constante transformação. Essa obra é transformativa, como o trabalho de Lia Rodrigues é transformativo. Contínuo e extremamente visual, ele te convida a perceber as figuras que despontam nessa floresta, trabalhadas como algo além do humano, que reflete o próprio tema e título da obra, o encantado como entidade espiritualizada que transita e transmuta entre a natureza.

Nessa floresta, domina a leveza do encantamento. Missão cumprida, graça atingida. Um tom bom pra ver depois da sequência violenta de obras de enfrentamento da cia. Mas Encantado não é só satisfação. Encantado opera pelas brechas, pelas frestas. Em meio à ameaça ao mundo, ele é a planta que nasce na rachadura na pedra. Em meio ao caos da pandemia, ele é a esperança de uma ocasião pra dançar junto.

E junto ele se constrói. Aqui, pouco se faz sozinho, este é um trabalho de conjuntos, de pequenos grupos, que nos mostram os efeitos das proximidades. Recobrindo ou recobertos por incertezas. Como não podia deixar de ser, a obra reflete a vida de seus criadores, fala do momento da Maré, onde está sediado o projeto de Lia Rodrigues, do enfrentamento do movimento “Maré Diz Não ao Coronavirus”, que ocupou o próprio espaço da companhia de dança, a qual também viu seu teto ser destruído por chuvas e reconstruído em trabalhos que continuaram enquanto o espaço acolhia o movimento e, ao mesmo tempo, a montagem de Encantado.

Como água, Encantado corre pelas beiradas, encontra caminhos onde possa fluir, e segue. Esparrama, nutre, faz florescer. Fala de comportamento, de mundo, de agora, e mistura o concreto e o encantado. Discute o que é visto, o que é belo, como é visto, porquê é belo. Movimenta a mente, provoca questionamento, dúvida, enfrentamento, e encantamento.

A estrutura necessária pra poder fazer esse encantar vem toda importada: a obra é uma co-produção de umas 20 instituições europeias, notavelmente francesas, onde Lia também é Artista Associada de dois espaços cênicos, e foi homenageada dentro da programação do Festival de Outono de Paris, que recebeu a estreia de Encantado no ano passado, só agora chegando ao Brasil.

A tendência à produção para o exterior, mas que discute um Brasil, sempre anda sinuosa e perigosamente pela fronteira entre a autenticidade da experiência e a construção cênica de uma visão selvagem que ainda vende bem no exterior. O que parece que cativa e convence é que em Lia Rodrigues, trabalho e discurso transparecem honestidade, sinceridade, entrega. E ai, o quanto o outro lê isso corretamente se torna menos uma questão. Porque na nossa realidade, mas sobretudo na realidade desse elenco, esse trabalho (e esse tipo de proposta) faz sentido, pulsa, reverbera, comunica.

É excelente que haja esse interesse exterior pelo trabalho dos nossos artistas, ao mesmo tempo em que é triste que esse interesse seja necessário, mas só os apoios internacionais mantêm a possibilidade de trabalho da companhia, que, como esse espetáculo, cresce pelas frestas. Encontra espaços onde eles não estariam abertos. Descobre possibilidades onde não se espera que elas existam. Constrói florestas com 140 cobertores do mercadão de Madureira, e 11 bailarinos notavelmente dispostos a se entregar ao público. Em retorno, encontra um público notavelmente disposto a se encantar.

Criação:  Lia Rodrigues

Dançado e criado em estreita colaboração com Leonardo Nunes, Carolina Repetto, Valentina Fittipaldi, Andrey Da Silva, Larissa Lima, Ricardo Xavier, Joana Lima, David Abreu, Matheus Macena, Tiago Oliveira, Raquel Alexandre

Assistente de criação: Amália Lima

Dramaturgia:  Silvia Soter

Colaboração artística e imagens:  Sammi Landweer

Criação de luz:  Nicolas Boudier com assistência técnica de Baptistine Méral e Magali Foubert

Operação de luz: Jimmy Wong

Trilha sonora/mixagem: Alexandre Seabra (a partir de trechos de músicas do povo GUARANI MBYA/aldeia de Kalipety da T.I. Tenondé Porã, cantadas e tocadas durante a marcha de povos indígenas em Brasília em agosto e setembro de 2021 contra o ‘marco temporal ‘, uma medida inconstitucional, que prejudica o presente e o futuro de todas as gerações dos povos indígenas).

Produção e difusão: Colette de Turville com assistência de Astrid Toledo

Administração França: Jacques Segueilla

Produção Brasil: Gabi Gonçalves / Corpo Rastreado

Produção e idealização do projeto Goethe Instituto: Claudia Oliveira

Secretária: Glória Laureano

Professores: Amalia Lima, Sylvia Barretto, Valentina Fittipaldi

Uma coprodução de Scène nationale Carré-Colonnes; Le TAP – Théâtre Auditorium de Poitiers; Scène nationale du Sud-Aquitain; La Coursive – Scène nationale de La Rochelle; L’empreinte, Scène nationale Brive-Tulle; Théâtre d’Angoulême Scène Nationale; Le Moulin du Roc, Scène nationale à Niort; La Scène Nationale d’Aubusson; Kunstenfestivaldesarts (Brussels); Brussels, Theaterfestival (Basel); HAU Hebbel am Ufer (Berlin); Festival Oriente Occidente (Rovereto); Theater Freiburg; l’OARA – Office Artistique de la Région Nouvelle Aquitaine; Julidans (Amsterdam); Teatro Municipal do Porto; Festival DDD, dias de dança; Chaillot – Théâtre national de la Danse (Paris); Le CENTQUATRE-PARIS; e Festival d’Automne à Paris.

Com apoio de FONDOC (Occitanie) /França; Fundo internacional de ajuda para as organizações de cultura e educação 2021 do ministério federal alemão de Affaires étrangères, do Goethe-Institut et de outros parceiros; Fondation d’entreprise Hermès/França, com a parceria de France Culture.

Lia Rodrigues é artista associada do Théâtre national de la Danse (Paris); Le CENTQUATRE-PARIS

Uma produção da Lia Rodrigues Companhia de Danças com apoio da Redes da Maré (Campanha “A Maré diz não ao Coronavírus – projeto  Conexão Saúde”) e do  Centro de Artes da Maré .