A identidade como embate
Misturando o embate e a delícia da construção da identidade, o ‘Muyrakytã’ de Allan Falieri se inspira no ‘Macunaíma’ de Mário de Andrade pra repensar ideais modernistas, numa obra apresentada dentro efeméride dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922.
Trazida à vida pelo Macunaíma de Mário de Andrade, a grande proposta do modernismo (aquele da centenária Semana de 1922) não era uma resposta, era uma busca. Os modernistas olharam para as propostas dos românticos, que em seus idílios inventaram uma mitologia brasileira, e perceberam a falha: o nosso povo é uma mistura que não teve receita, que não foi feita de paz, e que sempre chegou ao mundo com notáveis dores de parto.
É assim também que chega o Muyrakytã de Allan Falieri para o Balé da Cidade de São Paulo. A temporada, que lotou o Theatro Municipal por duas semanas, encerrou as festividades do centenário da Semana de 1922. Comemorar não é uma palavra fácil, e não é uma palavra boa. A este ponto da história, parece que entendemos isso um pouco melhor, e esse centenário não veio coberto de idealizações românticas do passado, mas tensionado pelos questionamentos dos modernistas, ainda vivos entre nós.
No livro que serve de inspiração para a coreografia, o “herói sem nenhum caráter” faz uma grande peregrinação, na busca da muiraquitã, amuleto que ganha da Mãe do Mato, que perde em batalha, depois é encontrado por uma tartaruga, vendido ao gigante devorador de gente, recuperado quando o herói mata o gigante, e novamente perdido quando Macunaíma é mutilado pela uiara, antes de ir pro céu e virar a constelação da Ursa Maior.
O Muyrakytã de Falieri não tenta adaptar a narrativa do Macunaíma de Andrade, mas, ainda assim, muito da obra está lá. A sensação das andanças, as seduções e aventuras, as incertezas e embates, o absoluto questionamento sobre ser alguém, e, acima de tudo, a brutalidade e as dores que se misturam com a força e festa, atravessam a coreografia como um parto: cheio de beleza e boa esperança, mas não sem esforço e dor.
Pra desenhar essas oposições, o coreógrafo trabalha sobrepondo o conjunto e os destaques. Os conjuntos não são exatamente homogêneos, o que dá um tanto de desconforto ao olhar, mas faz parte dessa proposta que lida abertamente com o grotesco, com reconhecer que os processos retratados não são de passe de mágica e milagre. O grotesco deixa misturar o que é do humano com outras possibilidades. Robótico, animal, divino, vegetal. Os bailarinos não são exatamente gente, são gente-em-formação, como a nossa própria identidade, com períodos de lava quente escorrendo, e sedimentação dura e bruta, e vegetação que cresce por cima, e desastre natural que leva um tanto disso embora. Como a Terra, o sujeito se constrói da adversidade, e desenvolve em ecossistema.
É preciso ser um, mas é preciso fazer parte do todo. E a coreografia dosa bem o trabalho de mostrar o um em oposição ao todo, como num solo de destaque (Luiz Crepaldi na primeira semana, e Harrison Gavlar na segunda — no papel que até agora mais lhe deu oportunidade de mostrar seu talento no BCSP), mas também de mostrar como o um pode conduzir o todo, como acontece numa passagem extremamente curta, talvez até curta demais pra chamar de solo, que, na primeira semana da temporada, feita por Leonardo Silveira, coloca o corpo pra mexer com tanta leveza, com tanto encanto, que parece que, assim como o conjunto, o mundo se move diferente depois dessa passagem.
São segundos de cintura solta e sorriso largo que alimentam esperança. Talvez sejam os instantes breves de encontro do amuleto, de localização de si em meio aos processos difíceis. A cena faz um paralelo lindo com uma cena de parto, um tanto anterior na obra, esta mais pesada, séria e até melancólica, que mostra o esforço para colocar algo no mundo, enquanto aqui o que se escancara é a delícia dessa realização. É também essa a movimentação e a interpretação que ficariam lindas e mais esperançosas pro solo final, quando a obra mergulha de volta na escuridão, dentro de uma proposta de iluminação de André Boll que, bastante acertada, parece localizar esse Muyrakytã no espaço, entre as estrelas, uma fatia da história da via láctea, vazando luz nas histórias dos indivíduos.
Como no romance, algumas imagens corporais insistem na cena, nem sempre se definindo. É parte do bom trabalho de dramaturgia assinado por Fabiana Nunes, que cria figuras que intrigam, como uma mulher (quase sempre) de costas, andando numa luz recortada que não sabemos onde está ou pra onde vai e abre um excelente espaço pra Victoria Oggiam e Renata Bardazzi mostrarem a absurda potência da mera presença, que depois se transforma na absurda presença do corpo que dança.
Estar presente, e ocupar espaços não são questões à toa frente a essa obra, nesse momento. A fachada do Municipal durante essa temporada está tomada pela instalação Recostura, de Chris Tigra, que questiona onde estava o negro na semana de 1922. Cem anos depois, é um coreógrafo negro que coloca o BCSP pra dançar sobre identidade nesse palco.
A própria companhia passa agora mesmo por esse processo, às vezes delícia e às vezes doloroso, de construir identidade, depois de complicados períodos de crise. Nessa primeira temporada no TMSP sob a nova direção, de Cassi Abranches, é lindo ver a companhia ocupando dez dias lotados do Municipal. Parece redundante comemorar um corpo estável ocupando sua própria casa, mas não é. Muyrakytã foi montado com o BCSP novamente sem poder ensaiar na própria sede, e o restante do programa de 2022 prevê apenas mais duas temporadas no Municipal, uma com 5 dias, outra com 8. São só 23 dias, em um ano, dançando na própria casa. É muito pouco. É especialmente pouco pra uma companhia que lotou suas últimas temporadas, e pra uma instituição que encheu a boca pra anunciar a temporada de 2022 com “11 títulos de óperas e 28 sinfônicos”. O Balé da Cidade, e o público do Balé da Cidade, merecem mais.
Mas esse “mais” não se constrói sem embate. Nada se faz só de delícia, de festa, de celebração. É preciso questionar, ocupar fachadas, ocupar palcos, e encarar o parto doloroso daquilo que queremos. Em oposição à rosa no asfalto, o muyrakytã perdido, que precisa ser buscado, parido, construído, e que convoca elenco e público para esses processos, com os braços abertos que sobem clamando por mais força, mais braços, mais gente na linha de frente.
Quando Yasser Díaz faz esse gesto em Muyrakytã, da plateia, o corpo responde. Pende pra frente. Quer cerrar fileiras. A intensidade da sustentação dos seus ombros parece que guarda um segredo, como se Falieri tivesse contato pra ele (e talvez só pra ele), onde é que está esse muyrakytã. Sabendo, ele chama o grupo. Com todo o peso de quem sabe que chama para o embate, que é necessário, e que não vai ser só delícia. O grupo responde. A plateia toda responde. Vamos atrás dele. Juntos.
Allan Falieri, concepção e coreografia
Fabiana Nunes, dramaturgia
Beto Villares e Mbé, música original
Beto Villares e Allan Falieri, direção musical
Dona Onete, participação especial
Ryane Leão, poesia
Paulinho Bicolor e Érico Theobaldo, colaboradores
Alexandre dos Anjos, figurino
André Boll, desenho de luz
Carolina Franco e Roberta Botta, ensaiadoras
Preta Kiran, Irupé Sarmiento, preparação de elenco
Elenco dias 16 a 20: Ariany Dâmaso, Carolina Martinelli, Erika Ishimaru, Fabiana Ikehara, Fabio Pinheiro, Grecia Catarina, Jessica Fadul, Leonardo Silveira, Luiz Crepaldi, Marcel Anselmé, Marcio Filho, Marisa Bucoff, Uátila Coutinho, Victor Hugo Vila Nova, Victoria Oggiam, Yasser Díaz
Elenco dias 23 a 27: Alyne Mach, Ana Beatriz Nunes, Antônio Carvalho Jr., Bruno Gregório, Bruno Rodrigues, Cléber Fantinatti, Fabio Pinheiro / Leonardo Hoehne Polato, Fernanda Bueno, Harrison Gavlar, Isabela Maylart /Renée Weinstrof, Leonardo Muniz, Luiz Oliveira, Manuel Gomes, Marina Giunti, Rebeca Ferreira, Renata Bardazzi
Fotos, Rafael Salvador e Stig de Lavor