Críticas

Ladrão | Grupo Zumb.boys (CCSP Semanas de Dança)

Parte da comemoração dos 10 anos de pesquisa cênica do Grupo Zumb.boys, a mostra do repertório dentro do CCSP Semanas de Dança 2017 apresenta “Ladrão”, que, vista em retrospectiva, começa a apontar os caminhos dessa companhia, e é agora criticada no Da Quarta Parede.

Um painel de peças metálicas com o formato de um olho recortado marca a cena de “Ladrão”, espetáculo de 2015 do Grupo Zumb.boys, que integrou a mostra de repertório da companhia, celebrando seus 10 anos de pesquisa cênica dentro da programação do CCSP Semanas de Dança 2017, do Centro Cultural São Paulo.

Iluminado de contra, esse olho nos coloca numa situação de assistirmos enquanto somos assistidos, que se combina a um grande uso de fumaça no palco para criar a atmosfera de mostrar e esconder que a obra constrói. Nesse ambiente, “Ladrão” começa com uma entrevista, microfonada para a sala, questionando, não só o entrevistado, mas, indiretamente, o público e os bailarinos, se já roubaram alguma vez, se já foram roubados.

O título da coreografia já nos preparava para a discussão de uma figura emblemática e quase comum da nossa sociedade, o ladrão, reconstruída por Márcio Greyk a partir de uma perspectiva humanista e individualizada: sem generalizações do que seja roubar, do que seja ser roubado, do que leva alguém ao ato, e de como reagimos e nos sentimos nessa situação.

Para caracterizar as muitas variações de um tema constante, “Ladrão” é atravessada por discursos gravados e relatos feitos em cena pelos bailarinos, focando não só no medo da vítima, mas também no nervoso e na apreensão de quem rouba. A estratégia tem sucesso ao nos transportar para histórias diversas, que não são — nem tentam ser — ilustrativas da dança, ou ilustradas pela coreografia, mas que funcionam para criar uma aura e um desenvolvimento do tema enquanto possibilidade de reflexão.

Aqui, não estamos reduzidos à dicotomia do certo e errado, do bem e do mal, do aceitável e do inaceitável. Greyk transporta a cena para além disso, indagando o que leva a esse tipo de ação, e às sensações por ela gerada em seus participantes. Coreograficamente, o que mais interessa é o aspecto quase lúdico da estruturação e realização dos golpes, convertidos no palco em jogos cênicos que resultam em uma movimentação predominantemente individualizada, mesmo quando feita em conjuntos.

Os agrupamentos dos intérpretes são alterados rapidamente, com bailarinos que se dispersam e correm, e todas as muitas entradas e saídas de cena são feitas com pressa, em instantes furtivos. A ocupação do espaço foca os modos como os indivíduos se posicionam a partir da presença e da influência da existência de outros por perto, o que é bem ilustrado em uma cena de impedimentos, com caminhadas que não se completam, em que os bailarinos tentam atravessar o palco, mas sendo constantemente barrados por outros.

Ao final da obra, a metáfora do olho que tudo vê, presente o tempo todo na cena, é expandida, e o painel metálico é atacado pelos intérpretes, mudando a ambientação sonora e causando um efeito visual de impacto. Aqui, já não estamos mais no domínio da análise de um sistema, passando verdadeiramente a um seu questionamento — social, pessoal, e político. Feito artisticamente, com uma mão leve que evita pregar e dar lições, mas que consegue comunicar e mostrar uma situação aparentemente comum — ainda que, claramente, diversa —, dentro de sua realização, seus efeitos e seus desdobramentos.

O diálogo principal de “Ladrão” se dá entre o indivíduo que rouba e ele mesmo. A esse diálogo solitário temos acesso pela grande quantidade de texto falado — e nem sempre claramente compreensível — que pauta a obra. Essa impressão da solidão é aumentada pelo trabalho quase que constantemente isolado dos intérpretes. A estratégia é arriscada, mas faz sentido, porque se alimenta das origens dos movimentos das danças do hip hop, ao mesmo tempo em que se reflete na exploração dada para o tema em questão.

Para o grupo, sobretudo quando assistido num contexto como esse de retrospectiva e mostra de repertório, “Ladrão” afirma o seu valor enquanto uma obra de uma primeira fase, que se desenvolve e melhora notavelmente nos trabalhos seguintes do grupo, sobretudo a partir da integração e da experimentação da mistura do b-boying com outras formas de movimentação, e com a continuidade da exploração cênica contemporânea, que firmaram mais recentemente o trabalho do Zumb.boys, com o seu merecido reconhecimento.

 

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