Ritual feminino de cicatrizes
Cinco intérpretes desenrolam um fio vermelho, refletindo sobre o feminino, seu universo e suas estratégias, na “Ferida Sábia” de Ana Vitória.
O feminino como rito, como universo simbólico e significativo é o tema da instalação coreográfica “Ferida Sábia”, que Ana Vitória criou em 2012 e na qual atua junto de Angel Vianna, Priscilla Teixeira, Renata Costa e Soraya Bastos, e fez parte da Ocupação Angel Vianna no Itaú Cultural. As intérpretes, com idades dos 34 aos 89 anos, já por sua presença traçam pela cena um panorama de idades (e dos corpos) da mulher, imagem que é completada por uma meticulosa cenografia que toma todo o espaço, em meio a vermelho sangue, e camisolas antigas, bordadas de palavras.
A disposição da obra no Itaú Cultural dificulta um pouco sua apreciação completa. São muitas as referências nela presentes, para além da movimentação das intérpretes, e o público se beneficiaria de uma dinâmica maior pelo espaço, que aqui foi traída com o sentar-se e parar para olhar, e o foco voltado aos corpos e aos ritos do centro da cena.
Mesmo que pudéssemos transitar pelo espaço, seria difícil escapar do foco que esses cinco corpos oferecem para a obra, que transforma vivência em experiência estética e transmissível, carregada de sentidos e de significados em seus elementos. E por isso é positivo que tanto da organização de Vitória trabalhe acionar espaço e um de seus elementos principais: novelos de fios vermelhos, entremeados nos quais vemos alguns objetos que parecem construir a mesma memória afetiva e pessoal das camisolas penduradas pelo espaço, mas que eu pouco podia ver, dado o uso da sala.
Esses novelos se enrolam e desenrolam por sobre as intérpretes, pelo chão e, finalmente, pela plateia, como se fossem veias, alimentando o presente com o passado, como se fossem vias, dirigindo percursos compartilhados. Nessa construção do espetáculo, perdeu-se um pouco da violência e do vermelho de montagens anteriores, que se aplacava sobre os corpos, pelos corpos, com os corpos e no espaço, sobretudo com as imagens, com o sangue, a carne, os óvulos, que magnificavam um estado de presença ao mesmo tempo sedutor e assustador.
Perde-se um pouco da violência, mas certamente não ela toda. Saindo do espetáculo, alguém da plateia comentava entre amigos “como é difícil ser mulher” — a reflexão é verdadeira, e faz sentido para o espetáculo, mas ele não é, em nenhum momento, vitimista ou de sofrimento. Resiste, a todas as instâncias que se constróem na cena, uma consciência e uma força, que trabalham numa dinâmica valorizadora do título da obra: há uma ferida, mas seu traço maior não é o da dor, mas o do conhecimento.
Dessa forma, misturam-se o prazer da observação, o elogio da força, o retrato da resistência, com outros elementos que poderiam sugerir — e talvez em outras montagens da mesma obra o tenham feito mais intensamente — o doloroso, o abjeto, aquilo que se esconde, aquilo para o que não se olha.
Reflexão aguda da situação feminina no tempo — e não só no tempo pessoal, mas também no tempo histórico — “Ferida Sábia”, mais do que um convite à reflexão, é um deslocamento reflexivo, que submerge o público dentro de um universo que compartilhamos em diferentes graus, em diferentes capacidades, com diferentes efeitos. Não precisa apontar dedos para compor uma imagem das participações, implícitas, explícitas, contínuas, de diversos atores em suas dadas situações.
Quando, ao final da obra, as intérpretes nos dão o fio vermelho, o questionamento que se constrói deixa de ser o “por que seguro isso agora”, e se expande para o como ja lidamos com aquilo que esse fio representa. Ritual do tempo, assim como os novelos, ele se desenrola, deixando vislumbrar aquilo que, às vezes despercebido, se prende no bolo, passa a fazer parte de sua constituição, e até arrisca deixar de ser percebido. Aqui, outra forma da inteligência das feridas, que se curam, mas deixam cicatrizes para serem lembradas.