Críticas

Flecha certeira

O saber que não tem tempo coloca o corpo pra refletir sobre o caçador e a caça — nas florestas de Oxóssi, e na mata fechada da cidade de pedra: flecha certeira de uma dança política pra agora.

Na floresta que o Treme Terra constrói no palco, numa proposta que mistura cenografia e projeção em rica experiência visual, os troncos que vemos elevados fazem pensar que estamos em meio ao chão da mata. Nessa noite, dançamos entre as criaturas que rastejam e os restos que se decompõem e viram vida nova. Esse é o solo fértil que ampara a mata, e o pé do caçador experiente, de flecha certeira, que por lá caminha a procura da caça.

O desenho é de um mundo-raiz. Rizoma. Mandioca que alimenta um continente. Mas aqui a caçada tem outros alvos. O Oxóssi provedor, irmão de Ogum, é também o Oxossi que contraria as imposições, que desrespeita o tabu, que não ouve o aviso de que tem dia que é não é dia de caça, e depois encontra o arrependimento. Em “Florestas de Odé”, também ouvimos esse aviso. E vemos que é nesse atrevimento — no exagero da função, na curva entre aprender a pegar o alimento e transformar a caça em obsessão, em depredação — que enxergamos a humanidade.

A floresta do Treme Terra enfrenta a depredação humana, que se sente na estrondosa motosserra que toma o espetáculo. É o tal progresso, pernicioso e ameaçador. Rolo compressor do futuro hostil. Nos leva pra frente, adiante, pra longe — saída tangente dos tempos e saberes circulares e milenares. Depois? O fogo. Se ele é castigo, se ele é o próprio erro do homem, não sabemos exatamente. Mas, na floresta que queima, encontramos a cidade. Reflexo do orgulho e da desmedida do homem, os arranha-céus ocupam o lugar das árvores centenárias. Cinza, concreto, asséptico. Eles bem nos dizem: “a vida definha em terra do Pindorama”.

Essa proposta que articula o saber dos Orixás, e se coloca frente ao mundo atual, através de preciosa construção artística tem como resultado algo que é pura experiência estética. Que se sente movendo nas entranhas, que dá gosto, e provoca o público. É dança pra ser vista, pra ser sentida. E, não menos, pra ser pensada.

Usa uma inteligência e uma reflexão absolutamente atuais, de como o corpo reage ao mundo, munido de experiência, de ancestralidade, de vivência. E reflete esses processos em construções coreográficas e artísticas. É declaração, é denúncia, é cobrança, é exigência. Nos fala ao mesmo tempo do passado e da memória atemporal, e da extrema realidade atual: as pessoas de agora, na sociedade de hoje, numa cidade que está de pé, e que foi moldada por gerações de exploração desmedida, que nunca teve o objetivo de matar a fome. Então, quem se beneficia dessa exploração? 

Nós estamos no chão da floresta, entre as folhas que são pisoteadas e viram adubo, e as coisas que rastejam. Mas na floresta da cidade hoje, essas folhas são gente. E não são “todo mundo”, e não são “qualquer um”. Essa discussão tem história, tem rosto, tem carne, tem pele. Essa é uma nova geração de dança política, politizada, do agora. Que soca o estômago, provoca e cobra a nossa resposta. Faz isso com arte, sem depender de panfleto, e em valioso trabalho estético — um equilíbrio fundamental e não tão fácil de achar nos palcos.

O Treme Terra mostra que o pensamento político é uma questão de agora. Coisa de estômago, de pele, de mão calejada e costas atrofiadas. É dança pra toda a gente de hoje. Tiro de flecha certeira, corta contemporâneos anêmicos e sem gosto. É necessária, cansada de uma dança política passadista, que lê o mundo, seus heróis e ameaças, como se não tivesse chegado ao século 21. Extremamente atual, porque é ancestral, e aos poucos o mundo também tem aberto os olhos pra tudo o que existe de saber e que nem sempre foi levado à sério, nem sempre foi valorizado.

Caçador de uma flecha só, Oxóssi acerta sua mira quando reverencia a tradição. É o orgulho do provedor, daquele que mata a fome. Lembra também que, sem propósito, a caça é obsessão, exercício de força e dominação. E as nossas cidades foram construídas por cima de terras férteis por grandes exercícios de força que aumentaram a fome. Atravessar a floresta é preciso, porque quem sai dela não é mais o mesmo. 

“Florestas de Odé” convoca a essa viagem. Depois dela, cada um ainda precisa seguir o seu próprio caminho. Consultar os seus oráculos e a sua consciência. Descobrir quais as honrarias necessárias, e quais os tabus a respeitar. E ai, pisar leve na mata fechada, e torcer pra sua flecha ser certeira.

Direção Coreográfica e Musical: João Nascimento
Direção Técnica Coreográfica: Firmino Pitanga
Elenco: Letícia Cipriano, Pepeu, Suarrily de França, Gabriel Barco, Lucimeire Monteiro, Tito Nascimento, Bárbara Magalhanis, Daniel Pretho, Dallyyla Amazzymba, Juninho V, Rafael Mansor, Thayná Oliveira e João Nascimento
Produção executiva: Fernanda Rodrigues
Produção: Pedro Henrique, Alexandre Alves e Letícia Cipriano
Iluminador: André Rodrigues
Cenário: Achiles Luciano e Julio Dojcsar
Técnico de som: Pipo Pegoraro e Jomo Olaniyan
Prática de Yoga: Fernanda Rodrigues
Figurino: Isa Maria
Colaboração de pesquisa teórica: Pedro Neto
Concepção: João Nascimento
Criação Coletiva: Cia Treme Terra
Fotos: Raul Zito, Tati Silvestroni, Lúcio Telles