Memória / Preludiando | Ballet Stagium
Junto de uma obra de retrospectiva, o Stagium reapresenta Preludiando: nesse programa, vemos um projeto e uma exclamação — o quanto eles já fizeram, e o quanto ainda podem fazer, para nossa dança e para o nosso público. A resistência, a insistência, e a relevância do Stagium se destacam na crítica do Da Quarta Parede.
O Ballet Stagium comemora seus 46 anos de atividade em temporada no Teatro J. Safra, com a estreia de Memória e a reapresentação de Preludiando, de 2016. Mais antiga companhia privada em atividade no Brasil, o Stagium se tornou um marco, desde os anos 1970, pelo trabalho com temas e artistas brasileiros em obras que mesclam o uso da técnica clássica com múltiplas referências teatrais e artísticas, em criações originais, que circularam todo o país e outros continentes, e apresentaram — para os brasileiros e para muitos estrangeiros — a potência da dança que se faz aqui.
Enfrentando um difícil período de crise, a companhia se volta para sua história para compor um espetáculo de retrospectiva. Assim vem em cena Memória, que nos apresenta o elenco do Stagium todo vestido de cinza, e pautado pela voz de um narrador que marca a passagem do tempo anunciando, para cada trecho coreográfico apresentado, o nome da obra, o ano de criação, e o teatro de estréia. Só a movimentação e a música das obras é transportada para o agora: muito dos efeitos que foram construídos colaborativamente em figurinos, cenários e adereços, por exemplo, ficam para trás, nas cenas complexas e cheias de simbologia da companhia. Nessa estrutura excessivamente limpa, parecemos nos encontrar numa conversa com o coreógrafo Décio Otero, relembrando momentos de sua carreira; mas o resultado cênico, com seus cortes secos, e desprovido dos acompanhamentos das obras, não tem tanto do carinho que costuma transbordar dos criadores, dos intérpretes, e do público do Stagium.
Inegável é o prazer de ver em cena, ainda que apenas em trechos, algumas das 80 obras dessa companhia. E a escolha de quais vem para a cena deve ter sido tarefa monumental. Incontornáveis, como Kuarup ou a Questão do Índio, Coisas do Brasil e Batucada acompanham obras que ilustram outras fases do projeto da companhia, como Adoniran, Tangamente e O Canto da Minha Terra, e é inevitável um sentimento de falta, de obras que não entraram no corte, como Diadorim, Quebradas do Mundaréu, Quadrilha, Old Melodies, Bossa Nova, Missa dos Quilombos, Mané Gostoso…
A sensação de que falta algo não é demérito do espetáculo. Pelo contrário, ela atesta o tamanho do repertório da companhia e sua relevância. Mostra que o Stagium tem muito em sua história que vale a pena ver e rever, e afirma a insistência da companhia nesse seu momento de resistência e dificuldade. Ainda que paire sobre Memória o tom sombrio desse revisitar saudoso, complementa o programa a estréia de 2016, Preludiando, que vem mostrar aquilo que ainda há para ser visto e para ser feito pela companhia.
Longe do sombrio, Preludiando mostra Décio Otero em sua melhor forma: lírico, delicado, pungente. Organizada com os prelúdios da obra do maestro Claudio Santoro, Preludiandocoloca o elenco da companhia em construções que se apoiam intensamente no outro, ao mesmo tempo em que revelam as capacidades pessoais: são duos, trios e grupos de leveza ímpar, que flutuam, que escorrem, que brotam, e, simultaneamente, afirmam a força de um bailarino, e a força ainda maior das parcerias que estabelecem em cena. No Stagium, criar, assim como resistir, tem sido atividade conjunta, fortalecida pelo todo, pelos apoios, pelas parcerias.
Aqui, vemos as linhas da coreografia de Otero, que extrapolam o clássico e se inspiram em outras formas, nessa obra pontuando intensamente um expressionismo marcado pelos movimentos agitados de mão que insistem em aparecer ao longo da coreografia. A estrutura cênica remete a uma aula de ballet, e seus movimentos vão progredindo em andamento, sem descanso e sem cansaço, até um allegro final. Não há espaço para o tédio, que poderia chegar com facilidade numa proposta tão lírica, de música tão calma, e de movimentos tão leves.
O que Décio Otero faz — e o faz e como ninguém mais o fez por aqui, é algo de neoclássico, que vem de fontes do ballet e parece intencionar os seus propósitos, mas que carrega referências outras para se alimentar e se construir. Particularmente relevante, porque há no mundo um grande público para esse tipo de dança. Sem o tom do cômico que aparece em algumas das obras mais recentes da companhia, e sem os temas pontuais que aparecem em outras, o que fica na cena é uma forma de poesia pura de movimento, como há muito não se via pelos palcos daqui, frequentemente ocupados com figuras, com cenas, com personalidades, ou com exclamações, gritos de guerra e palavras de ordem.
Em Preludiando, o grito do Stagium é dança. Sua resistência é sua arte. E num programa como o dessa temporada, é inevitável o entendimento de que essa arte vale a pena, e de que ela não é apenas um marco na nossa história, mas é uma força no nosso presente.