Críticas

A realidade numa fantasia em preto-e-branco

Inteligente e sem pedantismo, o Stagium faz um comentário do nosso momento, no melhor do estilo de Décio Otero

Escrito para o Criticatividade

“Semanário alegre, político, crítico e esfusiante” — era como a Revista Fon-Fon se anunciava, quando foi lançada em 1907. O periódico marcou época, circulando por 51 anos, e, em sua proposta original, equilibrando os comentários artísticos àqueles da vida social e mundana, indo da moda à charge política, em ricas ilustrações de múltiplos e notáveis colaboradores. Bem sucedida, séria sem ser sisuda, a proposta da revista girava em torno da reflexão de seu momento, sem sobre ele construir discursos por demais complexos que afastassem o leitor, nem que se tornassem pesados demais para a sua apreciação — um ótimo casamento temático para o Ballet Stagium.

O Stagium foi fundado em 1971, então não conviveu com a Fon-Fon. Mas ambos compartilham uma aura, algo como um ponto de vista sobre o mundo: é preciso falar da realidade, é preciso pensar, ser sujeito, participante, atento, informado, ser inteligente — mas sem ser pedante. Para transpor esse universo criativo e reflexivo do papel à cena, o Stagium trabalha pela leveza e equilibrando seus comentários e críticas sociais a um produto estético sensível. Visualmente, nessa obra, realiza uma fantasia em preto-e-branco e em 2D, que parece testemunha de um outro tempo, o que se acentua pela trilha sonora, que Décio Otero e Aharon Gidali vão buscar em antigas composições do início do século XX, as quais nos chegam com o ruído de suas gravações originais.

Compondo no palco um grande aspecto de cartoon, a bela cenografia de Fábio Villardi estabelece uma relação direta com a revista que inspira esse trabalho do Stagium, ao criar o espaço no qual se articula a crônica social que sustenta essa obra. Contraposta a essas imagens chapadas dos elementos cênicos, a coreografia de “Fon Fon” escapa da bidimensionalidade. Mas, mantendo um diálogo com o traço das ilustrações e da cenografia, ela vem toda calcada em linhas, que nos falam, também, do estilo próprio do coreógrafo. Décio Otero trabalha suas coreografias como se fossem costura, daquelas bem feitas, por mãos atentas e capazes — elas andam pelo alinhavo, pela junção dos elementos que precisam ser unidos para se formar um todo. Não se trata de bordado, de decoração, de enfeite, mas de costura de fato: com a mão precisa, ele faz aquilo que precisa ser feito para que as partes se integrem, sem se desviar com o que possa atrapalhar o objetivo (e o objeto artístico) que são seu foco.

Esse controle de excessos e efeitos é de uma maturidade ímpar. Confia na qualidade — inegável — de seu trabalho, sem precisar recobrí-lo de disfarces. Sem precisar nos fazer desviar o olhar, como é o caso com tantas obras atuais, que seduzem os olhos, mas cujas costuras, se olharmos o arremate do tecido, são frequentemente trabalhos fracos, apressados, ou descuidados. Nada disso por aqui. Às mãos do maestro se juntam as de Márika Gidali, e seu faro aguçado para a composição teatral. Na dramaturgia — que se estabelece através da trilha sonora, em diálogo com a cenografia e o figurino, e se completa com a movimentação — as cenas de “Fon Fon” se passam em múltiplos números, como as faixas de um disco que vão se sucedendo. Mesmo com o teor do comentário social, as propostas resistem constantemente ao lirismo, sendo trabalhadas a partir de uma fisicalidade despojada e brincalhona, que é bem cara do Stagium, mas também da Revista homenageada.

Destacam-se entre as cenas, alguns trabalhos especialmente bem sucedidos, como o duo de Eugênio Gidali e Ariadne Okuyama com um banco, a cena de “Linda Flor (Ai, Iôiô)”, além do Maxixe e, claramente, do “Abre Alas” que encerra a obra. Nesses exemplos, vai se transpirando cada vez um pouco mais da irreverência e da crítica que o tema escolhido pela companhia permite em seu tratamento. Não que isso se ausente do resto da obra — suas pinceladas — ou melhor, sua costura — orientam toda a construção cênica, clownesca e inteligente, de um retrato de costumes, de uma sociedade de preocupações mundanas e que parecem até tolas, o que vai levando a obra, até certo ponto, a uma percepção de uma quase leveza, quase frivolidade, por detrás da qual se fazem contundentes críticas sociais, no mesmo esquema das charges da Fon-Fon.

Assim, o Stagium usa da leveza como estratégia de construção crítica. Mas seria um erro deixar os olhos se desfocarem e apreciar só as músicas, o visual e os movimentos, sem refletir sobre esse conjunto. E, aos poucos, essa possibilidade vai deixando de existir no trabalho. Mesmo no que parece uma reflexão cômica sobre um incidente da alta sociedade, por exemplo na cena do Maxixe, o discurso que acompanha a coreografia nos esclarece sua situação. Ele nos fala do escândalo de quando a então primeira dama do Brasil Nair de Tefé (que foi também colaboradora da Fon-Fon, sob o pseudônimo de Rian) apresenta numa festa do presidente Hermes da Fonseca o “Maxixe do Corta Jaca”. Tratando da ocasião, Rui Barbosa, no momento senador, se refere a essa dança em um discurso como “a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”, estendendo o que foi lido como um ataque ao presidente, seu adversário político.

A partir dessa fala, os bailarinos nos mostram o Maxixe que, se podia ser chocante na sua época, causa hoje um estranhamento limitado. Aqui, pode-se olhar para o caráter caricatural do “Fon Fon” do Stagium, emprestado da Revista, com a leitura desse episódio (até risível) para muito além de seus limites imediatos, e como um reflexo (sempre) atual da nossa sociedade, e das restrições e perseguições que os artistas da cena tem encontrado — e que aqui nos parecem, sob essa ótica, de fato grandes escândalos que se fazem por coisa pouca, e sob pretextos nem sempre honestos. Boa reflexão sobre o juízo da arte que se fazia, que se fez e que ainda hoje se faz, em troca de ganhos políticos e manipulação de massa.

É esse tipo de intencionalidade que fascina no trabalho de Otero e Gidali. Nada parece à toa, nada parece gratuito. Todas as partes são fundamentais para o todo, e o mais encantador é a costura desse cunjunto, cujas sutilezas guardam profundos sentidos. Sua coreografia se faz leve e pontual, assim carregando tanto melhor o peso de sua crítica. Mesmo quando se abre um espaço para um trabalho coreográfico mais técnico e rebuscado — como no “Linda Flor”, cujo duo é a cena que mais (e melhor) mostra a movimentação organizada pelo coreógrafo —, há sempre uma percepção de sentido, de proposta, de consciência: não é à toa que o Stagium seja a nossa mais antiga (e mais resistente) companhia privada de dança.

Quando chegamos ao final do espetáculo, não restam dúvidas da mensagem política pungente e atualíssima no “Fon Fon”: estamos ao som do “Abre Alas”, que nos chega através de uma procissão de banda (mesmo formato que abre a obra). Este é um dos casos da sagacidade do Stagium, que faz essa cena final com uma bandeira brasileira — porém preta, e aos pedaços — e os bailarinos em slow motion vindo do fundo para a frente do palco. Sóbrios e quase sombrios. Aqui não resta nada do que antes se poderia perceber como leveza, como despropósito, como despretensão, e somos levados a repensar se havia realmente alguma leveza no restante da obra, enquanto olhamos os bailarinos que se aproximam de nós, como se marchassem debaixo (e apesar) dessa bandeira aos escombros. Perigosamente decididos, perigosamente resistindo, como todo o projeto do Stagium e de sua dança.

Neste projeto, já são 46 anos de história, produzindo dança notável, de resistência e afirmação, de continuidade e qualidade artística que formam uma história de comentário e análise da nossa sociedade; de celebração do Brasil, do brasileiro e da brasilidade; mas também de denúncia e de declarado engajamento. Inteligente e sem pedantismo, falando da gente, para a gente, com a gente, no que se revela, há quase meio século, um projeto de democracia em arte.