Críticas

O Sonho de Dom Quixote | São Paulo Companhia de Dança

O Dom Quixote de Miguel de Cervantes é uma obra de 126 capítulos, publicada em 1605, e notável na história da literatura. Sua apreciação a coloca constantemente em um patamar junto das grandes obras literárias, e sua popularidade justifica um interesse que se repete em adaptações e derivações, em textos diversos e tantas outras formas artísticas, como a dança. Desde meados do século XVIII temos Dom Quixote em dança, em coreografias, por exemplo, de Jean Georges Noverre, bailarino, coreógrafo, professor e teórico, reconhecido como um dos primeiros reformadores da dança clássica.

Outros grandes nomes se dedicaram a essa história, como Charles Didelot, que montou em 1808 um ballet em dois atos a partir de um episódio narrado em um dos capítulos do romance. Didelot fez sua obra para o Ballet Imperial do Teatro Bolshoi, onde, em 1889, Marius Petipa criaria uma nova versão, com música de Minkus. Em 1871, Petipa faz alterações no seu enredo, encomenda mais três músicas para o quinto ato, e cria a versão que, resgatada no século XX, a partir de notações da época, oferece uma base geral do que vemos hoje em dia, em versões novas e remontagens, que passam por diversos coreógrafos, como Gorsky, Nureyev, Barishnikov e Acosta, além de continuar uma referência mesmo para produções inteiramente novas, como a versão de Balanchine dos anos 1960 com música de Nabokov.

A essa lista de grandes nomes que oferecem suas visões para o Dom Quixote, a São Paulo Companhia de Dança inclui Márcia Haydée, na primeira obra criada para uma companhia brasileira pela coreógrafa, em 2015, e que volta à temporada de 2016 da SPCD no Teatro Sérgio Cardoso em grande destaque, sob o título de O Sonho de Dom Quixote.

Repensar um ballet com tamanha tradição não é tarefa fácil. Entre o que se espera de uma referência àquilo que o público reconhece como essa obra, e o que se deseja de inovação existe um caminho grande e tortuoso. Aqui, esse caminho é interessantemente percorrido através de referências que culturalmente nos pertencem — de forma até íntima. Por sugestão do cenógrafo, Hélio Eichbauer, a companhia trabalha com 21 desenhos que Portinari fez para a obra de Cervantes, a partir de encomenda da Editora José Olympio nos anos 1950.

Esses desenhos serviram de inspiração para Carlos Drummond de Andrade, que escreveu um poema para cada um deles, nos anos 1970. Desenhos e poemas serviram de inspiração para a criação de música original de Norberto Macedo, a Suite Dom Quixote – Portinari, para violão clássico. E todas essas referências sobem ao palco com a SPCD, cujos bailarinos encenam o Quixote de Haydée: uma obra jovem em seu elenco e no tratamento que a coreógrafa propõe aos personagens.

Diminuir a idade do personagem do Dom Quixote — parte tradicionalmente pouco dançada, interpretada por bailarinos maduros, como o próprio Balanchine, em sua versão — não significa diminuir sua profundidade. Quase louco, o Dom aparece tradicionalmente como perdido entre a imaginação e o devaneio, entre a realidade e as suas visões, que aqui são transportadas para esse universo de sonho, que parece ser o palco de toda a história revisitada pelo ballet de Haydée.

No todo, o enredo não difere significativamente do libreto original russo, ainda que apareça encurtado, dentro de um projeto da companhia que não prevê ocupar seu público com o tempo mais arrastado das estruturas dos ballets clássicos tradicionais, mas mantém alguns vislumbres dessa tradição, como o Grand Pas de Deux de Kitri e Basílio, e as variações femininas do primeiro ato. Em si, Dom Quixote não trata de um enredo elaborado, e repete o tema de um amor proibido, que enfrenta dificuldades específicas para se realizar ao fim da obra.

O que está ligeiramente mais fraco nessa versão são de fato essas dificuldades. A quantidade de personagens caricaturais que ocupam a cena — mesmo quando profundamente divertidas, como é o caso do Gamacho da SPCD — transforma os obstáculos desse amor em pequeninos empecilhos, a serem rápida e facilmente contornáveis. Essa facilidade diminui o heroísmo e a aventura do Quixote, e dificulta o entendimento da humanidade, do caráter de desespero pela realização de algo que é observado em outras versões do ballet.

Mesmo todas as referências modernas, que criam — ou criariam — diversas possibilidades de atualização das propostas, são epidérmicas na obra. Os desenhos de Portinari ocupam as pernas do palco, sendo domados — domesticados — pela estrutura cenográfica neutra, quase nua que ocupa o centro da cena, e pelos figurinos — belos e bem executados, mas que parecem retirados de um baú de fantasias, contrastando com dificuldade com a modernidade dos traços de Portinari, que ficam de moldura.

A música de Macedo aparece pontualmente, e é rapidamente substituída por uma trilha sonora de Minkus que, gravada, exerce muito menos impacto e deslumbre — e ainda ela que não perca seu encanto, parece menor e longínqua. E os poemas de Drummond, ainda que com conteúdos específicos e bem casados com as propostas da obra, em sua aplicação cênica — dois deles são ouvidos durante o espetáculo — estruturalmente lembram bastante o funcionamento dos poemas em Por Vos Muero, coreografia de 1996 de Nacho Duato, que a SPCD remontou em 2013.

O que não é em nenhum sentido epidérmico na obra é a qualidade das interpretações do elenco da São Paulo, que, neste caso mais do que em diversas outras instâncias de seu repertório, tem o privilégio de ter uma obra construída para os bailarinos em questão. Com um entendimento surpreendente desses bailarinos, Haydée criou formas de dança e interação que, mesmo que não carreguem em si uma marca de originalidade especial, carregam um entendimento do trabalho e da potência desses artistas — um entendimento que remete à característica da grande bailarina que ela foi, e que talvez seja seu maior potencial aqui realizado.

Através de suas propostas, vemos interpretações positivamente estonteantes, como a de Thamiris Prata — uma Kitri segura, sedutora, e impactante —, a de Vinícius Vieira — que transforma o personagem raso que é o Gamacho dessa obra em um caráter cômico sem ser bobo, que prende a atenção e comanda as cenas em que aparece —, e a de Milton Coatti — um Lorenzo curiosamente dominante no palco. No todo, há um feito remarcável em dar destaque para personagens que são pouco desenvolvidos pela história, o que testemunha da qualidade técnica de alguns dos intérpretes do grupo.

Aqui, vemos mais uma vez diversos indícios do que a companhia mostrou, por exemplo, em seu primeiro ballet clássico completo, o Romeu e Julieta de Giovanni de Palma (2011), sobretudo no que trata de um declarado desejo por fazer versões que se dizem brasileiras das obras clássicas montadas. No Quixote de Haydée vemos muitos elementos a mais, que avançam essa proposta e aumentam seu interesse. Ainda não vemos, desses elementos, uma realização que realmente ultrapasse a epiderme: não se trata de uma versão que se registre como um novo Dom Quixote. Temos o Dom Quixote de costume, mas alimentado por novas referências.

Essas referências, sim, indicam caminhos interessantes para possibilidades de propostas de criações originais a partir do repertório do ballet clássico. No entanto, essas propostas são propostas profundas, e demandam, mais que esforço, a disponibilidade e a coragem de se atirar à possibilidade de um grande erro — risco comum para grandes propostas. O que o Dom Quixote da São Paulo Companhia de Dança mostra é avanço e progresso dentro de um desejo de realização de ballets clássicos que indaga acerca de sua atualização. Todas essas, características que esperamos ansiosamente para ver como se demonstrarão na próxima criação clássica da companhia, esperada para o ano que vem.

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Programa da Estréia de O Sonho de Dom Quixote, de 2015