Grandes propostas e ótimas realizações refletem sobre o passado e o futuro da SPCD
Com grande estreia de Henrique Rodovalho, bem acompanhado de Clébio Oliveira e junto de Guivalde de Almeida, a SPCD mostra seu talento e suas formas de ver a dança.
Vez ou outra, num espetáculo de dança, acontece um casamento incrível. Um bom elenco encontra um coreógrafo(a) que que entende simultaneamente esse grupo de artistas e o momento da dança. Ao mesmo tempo, deixa a sua assinatura na obra, e cria o espaço para que os intérpretes apareçam e se realizem. Esse casamento tem sorte de verdade quando o time envolvido consegue colaborar sem competir por destaque. Luz, música e figurinos se juntam à interpretação e à criação, e o resultado do todo é simplesmente mágico. É desse nível o terceiro programa da São Paulo Companhia de Dança, que comemora seus 10 anos mostrando a que veio.
As duas primeira obras da noite já haviam sido apresentadas — juntas, inclusive — no programa de 2017. A primeira delas, a “Suíte de Raymonda” de Guivalde de Almeida, foi a primeira incursão no clássico do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros da SPCD, que têm servido pra afirmar e exibir talentos brasileiros de múltiplas gerações na criação de novas coreografias, mas também na execução delas. Grande exemplo desses talentos está nos conjuntos femininos desse trabalho, simétricos e precisamente marcados no tempo da música de Glazunov — frequentemente elogiada como uma das melhores de todo o repertório clássico.
Se as passagens mais calmas da coreografia dão esse espaço de percepção, os allegros, os saltos, e, no geral, a participação do elenco masculino, revela o peso da dificuldade coreográfica da peça, que é atrevida e arriscada, e nem sempre perfeitamente realizada, mas abre, como não poderia deixar de fazer, espaço para algumas revelações técnicas de impacto das capacidades do elenco. Um aceno a Mozart Mizuyama, que inadvertidamente, e até contra o que deveríamos ver, se torna um solista de destaque dentro do conjunto. Suas linhas são só suas, de fato quebram a harmonia do grupo, e, mesmo assim, seria impossível reclamar delas, tamanha a presença cênica e a qualidade de sua execução.
Em certo nível, seria de fato injusto e talvez antiquado esperar uma completa harmonia nas realizações e, sobretudo, nas proporções corporais do elenco. Mas como a obra se afirma enquanto uma referência à Petipa e, portanto, à escola russa do final do século XIX, “injusto” e “antiquado” são esperados: fazem parte da concepção e da construção da obra. O motivo que deixava os corpos de baile quase robóticos era o da padronização. Militarizantes e indistintas, as formações de grupo diminuíam o espaço do destaque pessoal — reservado às estrelas.
Aqui, num grupo de tanta(s) personalidade(s), é difícil se replicar essa padronização. E por um lado isso é fantástico: queremos mesmo espaço para que os bailarinos se realizem, se manifestem, se mostrem enquanto indivíduos. E também queremos uma produção de ballet clássico que saiba lidar com isso. Mas, por outro lado, assumir esse caminho é romper com as propostas e o estilo históricos que a obra anuncia recolocar na cena. Falta, então, uma decisão da direção a se seguir, porque não da, ao mesmo tempo, para olhar para trás e para frente.
O olhar de Clébio Oliveira está completamente voltado para o presente — é o que percebemos na realização de sua “Primavera Fria”. Um dos pontos altos da temporada do ano passado, a obra continua deliciosa. Composta com grande quantidade de movimentos em marcha à ré, que, no todo, tão uma percepção de retrospectiva na ação encenada, preenchida por levantamentos, pegadas e saltos para cima dos partners que colocam os corpos em lindas e novas direções, a obra aparece especialmente bem nesse momento da SPCD, por fazer essa possibilidade de reconhecimento do passado (retrospectiva), mas encaminhada para o futuro, pela boa compreensão de seu elenco e do estilo que almeja.
O retrato que a obra faz é realmente complexo. Ela trata de relacionamentos e de perda, mas não através de seu lado sentimental, e sim da percepção corporal desse fato. Nesse mapeamento neurológico do Oliveira, estamos dentro do cérebro — entidade sombria e misteriosa. E nele os bailarinos, em sua característica convulsiva e vibracional parecem traçar os caminhos dos neurônios, as sinapses se alertando, transmitindo mensagens, inscrevendo percursos como resposta. Pelo lado poético, a relação entre a perda — ter algo e de repente não ter mais — e as sinapses se constrói numa estrutura de se revelar do escuro os bailarinos, que entram sempre bruscamente na cena, e dela desaparecem.
É sim uma obra de exageros, uma obra cumulativa, que sobrepõe diversos elementos. Mas esse é um daqueles raros casos em que os exageros são bem vindos. O figurino é ótimo, a trilha sonora é impecável, a iluminação é simples e deslumbrante, o visagismo dos cabelos escandalosos funciona, a coreografia é inventiva, potente e cativante. Mas a maior de todas as realizações é a interpretação: Oliveira entendeu seu elenco, e lhes estendeu inúmeras possibilidades de triunfo.
Para realizar essas oportunidades, no entanto, é necessário cautela. Aqueles bailarinos que conseguem pegar todos esses exageros e ímpetos elétricos e sublimar suas explosões, se tornam incomparáveis, independente do tamanho do destaque de seus papéis. Beatriz Hack por exemplo, guarda em cada um de seus movimentos uma surpresa, e não deixa em nenhum momento que o tamanho desse conteúdo elétrico se transforme numa explosão pessoal. Essa explosão lhe seria deliciosa e catártica, mas é a contenção da explosão no seu corpo que permite que a platéia exploda no seu lugar.
Essa oportunidade que o coreógrafo dá ao elenco é ímpar: é a chance de se mostrarem artistas. Não dançar como um sintoma, ou como um desejo pessoal, mas dançar para a realização dessa expressão estética que passa do coreógrafo e da coreografia para eles, e deles para nós na plateia. E é com essa explosão que a obra é justamente efusivamente aplaudida.
O trunfo do entendimento do elenco, e da realização do grupo continua na obra que encerra o programa. A aguardada estreia de Henrique Rodovalho, “Melhor Único Dia”, que trabalha lindamente a característica técnica já identificada como assinatura desse que é um dos nossos maiores coreógrafos, a segmentação corporal, mas a desenvolve em outro plano, agora segmentando não apenas cada parte do corpo dos intérpretes, mas cada um dos intérpretes dentro do todo do conjunto dos bailarinos, sempre em cena.
O grupo é a chave dessa obra, que parece nos mostrar o elenco como uma matilha, um agrupamento animal, à espera ou à espreita, nesse espaço e nesse tempo em que algo — que resta indeterminado — está permanentemente prestes a acontecer. Incrivelmente jovem e refrescante, a obra é toda luz, desde seus recortes e modulações até à reflexividade dos tecidos dos deslumbrantes figurinos de Cássio Brasil, que adicionam textura ao movimento.
O social, a interação, que vivem na raiz dos trabalhos do coreógrafo, aqui assumem um domínio do relacional: trata-se, ao mesmo tempo, de uma exploração das dinâmicas “eu mais ou outros” e “eu contra os outros”. Parece complexo, e realmente é. Tanto essa obra quanto a anterior tem uma cerebralidade intensa. Mas isso não se faz a despeito da realização artística, que é constantemente sensível, constantemente palatável, e ao mesmo tempo investigativa, revelando uma ótima perspectiva para a dança, que pode sim ser hiper racional, mas que se dá muito melhor quando além de racional, consegue ser relacional com seu público — algo que Rodovalho sempre preservou em seus trabalhos.
Além de brilhante coreógrafo, Rodovalho é um exímio diretor artístico, e sua capacidade de criar cenas em dança, histórias mesmo sem enredo, e envolvimento, mesmo dentro de sua complexidade, são ímpares. Durante a última das cenas, um conjunto com os bailarinos andando em grupo e curvados para o chão, num ritmo que, regularmente, faz alguns deles se erguerem e despontarem do conjunto, para logo mais voltarem a ele, vemos os dois pontos maiores desse programa.
O primeiro deles é a saudade dos trabalhos de Rodovalho, há algum tempo ausentes dos palcos. Mas o tempo não lhe fez mal, nem diminuiu seu gênio — trouxe-lhe novas perspectivas. O segundo, é a valorização dos elenco da companhia, que tem sido, há dez anos, um dos pontos constantemente fortes da SPCD. Há um prazer incrivelmente especial em que esse programa — o melhor dessa temporada de dez anos até o momento — seja inteiro assinado por brasileiros. Nos enche de orgulho, e constrói expectativas ainda maiores para a próxima década da São Paulo Companhia de Dança.