Críticas

Jogos de construção e artesanato do espaço

“Trick Cell Play”, que Édouard Lock criou para a São Paulo Companhia de Dança é uma obra de artesanato do espaço. Segundo trabalho seu para a companhia paulista, mantém a natureza sóbria e até soturna do criador, colocando em cena alguns elementos de novidade que ajudam a justificar essa segunda entrada do coreógrafo no repertório.

Lock um artista de uma obra, que é contada e recontada em diferentes capítulos/instâncias. Há anos ele mantém para si uma missão de descobrir e desvendar o trabalho com o gesto transformado em exposição fotográfica e cinematográfica — dependente de complexas construções de iluminação e posicionamento, que carrega um sentido de sua mensagem geral — pouco clara, mas decididamente ligada à natureza humana, vista com um tom sombrio, e sua expressão através dos corpos.

Seu princípio coreográfico é um princípio íntimo do ballet e de sua história: a artificialização do gesto natural. Trata-se de um estudo de mecânica, trespassado por possibilidades estéticas de reorganização, representação e ressignificação, que trazem novas possibilidades para formas já conhecidas. Como esse trabalho desenvolve-se há muito tempo, não há aqui, de fato, muito de novo. Mas Lock é um coreógrafo que pouco frequenta o Brasil e, com isso, parece fácil apontar em seu trabalho — pouco conhecido aqui — alguma novidade.

Novidade, no entanto, é algo fundamental para este tipo de trabalho, porque é o que justifica e sustenta o valor e o lugar do experimentalismo. Uma vez familiarizados com a estratégia coreográfica, passamos a buscar sentido dentro de outros aspectos. A troca compulsiva de luzes na cena, que já havíamos visto em sua obra anterior, aqui é mantida com pequenas diferenças de angulação, e trabalhadas a partir da penumbra de uma luz que reflete no chão e só então atinge os bailarinos.

Essa estratégia abre um lugar para a dança no espaço negativo, que se associa também ao tanto do que a trazido pelos sapatos de saltos colocado nas bailarinas do elenco, criando uma variação com as suas já reconhecidas cenas em sapatilhas de ponta. Lembrando um pouco mais os movimento que vêm das danças de salão, a questão do espaço negativo ganha desenvolvimento: é nesse espaço que os corpos interagem, é no negativo de um que consegue adentrar o positivo do outro.

O direcionamento da luz para captação, e sua alteração constante, fazem pensar um tanto em iluminação de Natal, piscando e revelando aspectos nem sempre visíveis de ângulos e posicionamentos de objetos, copos, elementos. Essa construção é desfavorecida pela presença ao fundo do palco dos músicos que tocam a trilha ao vivo, porque sua constante iluminação, ainda que baixa, abre espaço para se ver, na penumbra da cena, diversas das movimentações e antecipações dos movimentos dos bailarinos.

A maior dificuldade com a obra é que sua construção é capaz de nos dizer “ a gente se mexe, a luz muda, isso é interessante, isso é bonito”. Matéria justa e que tem sido a base de coreografias de balé abstrato por mais de um século. Um pouco mais pesado, é aceitar esta proposta para o tamanho todo da obra: seus 50 minutos são pelo menos 3 vezes maiores do que a quantidade de conteúdo que ela tem a nos dizer.

Ai, a proposta cansa muito depressa, porque se esgota rapidamente. E ficamos na plateia vendo a construção se repetir em N formas, em N iluminações, em N ângulos, em N formações do elenco, até o fim do espetáculo. Uma missão complexa, pesada, e para a qual grande parte da plateia não estará nem preparada nem disposta.

Essa indisposição é assunto importante, nos diz respeito àquilo que o público está disposto e interessado em ver. Do lado oposto do espectro há um elemento fundamental em se forçar os limites daquilo a que já sabemos assistir, para que haja avanços, tanto na linguagem da dança, como no público da dança. Uma missão complexa, que a companhia já tentou em outras instâncias, com resultados variáveis. Aqui, a resposta se limita à provocação, trazida por uma fórmula repetida (e, em si, repetitiva), trabalhando construções espaciais através da luz e do movimento, que abre espaço para a reflexão acerca da condição da dança e sua inovação.

Seu tamanho e seu cansaço à parte, aquilo que sustenta a obra — e a ideia da repetição, explícita por uma nova instância da obra-una do coreógrafo — é que esta é provavelmente sua instância mais bem realizada. Lock faz pesquisa através da prática coreográfica, e, com sorte, algum dia poderemos ver em suas criações seus resultados se tornarem mais aparentes que seus processos. Até lá, acompanhamos — um tanto confusos, mas intrigados — seus jogos de construção.