Críticas

Indigo Rose / Petite Mort / Six Odd Pearls | São Paulo Companhia de Dança

Um programa jovem, com uma obra de peso no meio, abre a temporada de Junho da São Paulo Companhia de Dança no Teatro Sérgio Cardoso. Duas coreografias de Jirí Kylián e uma estréia de Richard Siegal vêm valorizar o elenco da companhia, mostrando, em perspectiva, opiniões sobre a formação de seu repertório que começa a engrossar, aqui discutido no Da Quarta Parede.

O primeiro programa da temporada de Junho da São Paulo Companhia de Dança levou para o Teatro Sérgio Cardoso um programa muito semelhante ao que iniciou a temporada de 2015 da companhia. Se, um ano atrás, a companhia apostou num programa todo com obras do coreógrafo tcheco Jirí Kylián, em 2016 são repetidas duas delas, junto de uma criação original de Richard Siegal para a SPCD. O todo do programa marca uma tendência presente no repertório da São Paulo Companhia, de um trabalho que parte do clássico — e da formação clássica — mas investe sobretudo em realizações contemporâneas de dança.

A formação de Kylián passa pelo Royal Ballet de Londres, onde ele conheceu John Cranko, que o contratou para o Stuttgart Ballet, companhia em que foi bailarino e  para a qual passou a coreografar obras. Kylián foi convidado a coreografar para o Netherlands Dans Theatre quando a companhia holandesa estava em turnê em Stuttgart, e depois de 3 colaborações, assumiu a posição de diretor, sendo visto como um dos responsáveis pelo aumento da relevância do NDT no mundo.

Em 1978, quase 20 anos após a sua fundação, a companhia holandesa cria um subgrupo, o NDT 2, que trabalha dedicadamente com bailarinos jovens, de experiência clássica, com o intuito de formá-los para a companhia principal, através do trabalho com diversas obras de coreógrafos já estabelecidos, além de novos criadores. É desse local que vem a primeira obra do primeiro programa de junho da SPCD, Indigo Rose, originalmente criada por Kylián para o NDT 2 em 1998, e desde 2015 no repertório da São Paulo Companhia. Uma obra visualmente impactante, com uma proposta coreográfica que carrega as marcas do trabalho de Kylián, mas que mantém uma característica — ainda que leve — de “mastigada”, de mais simples: o que se justifica por esse lugar de origem, focado num elenco em formação.

É interessante ver esse tipo de obra na SPCD, que, ainda que tenha se estabelecido notavelmente tanto no Brasil quanto no exterior ao longo dessa quase década de atividade, possui de fato um elenco jovem, e que parece se identificar com o trabalho do coreógrafo e desse tipo de proposta. Mais interessante ainda quando pensamos que no primeiro ano da companhia paulista tivemos a remontagem da obra de estudo de Balanchine, Serenade, criada originalmente para a School of American Ballet, em 1934, e até hoje usada frequentemente como peça de formatura dos alunos dessa escola (— ainda que, é importante observar, a obra tenha sido retrabalhada pelo próprio coreógrafo para diversas companhias profissionais de renome, e seja essa a versão que a SPCD dançou).

O grande jogo de Indigo Rose é uma construção visual inesperada. A obra, dividida em quatro partes, tem, durante a terceira delas, um tecido que corta o palco, suspenso por um cabo que o atravessa transversalmente, criando a imagem de uma vela de barco, e dois espaços distintos de cena, um oculto pela vela, ao qual temos acesso apenas pelas sombras dos bailarinos do lado de lá, projetadas pela iluminação, e outro à frente da vela, que vemos em dois níveis: tanto nos corpos dos bailarinos, quanto em suas projeções no tecido.

Essa dualidade — oposição determinante que se coloca à força — se traduz no tema da obra, que, segundo o coreógrafo, propõe discutir como os jovens lidam com a vida, a morte e a sociedade. Na coreografia, a dualidade também reverbera em movimentos ríspidos sobrepostos a outros líricos. Ela também se percebe na oposição das quatro músicas da trilha, que alternam faixas de minimalismo contemporâneo, e faixas de música barroca. No todo das intenções expressas, a que fica mais perceptível é um entendimento de separação, transformado em metáfora de caminho e distância pela vela e pela iluminação angular que toma a cena. De resto, é preciso acreditar, um pouco mesmo às cegas, que o desenvolvimento dá conta daquilo a que se propõe.

Indigo Rose é uma escolha inusitada para o repertório da SPCD. A coreografia é pouco dançada pelo mundo, e talvez por um bom motivo: ela depende de uma comunicação do elenco com o público, que sustente todos esses conteúdos que não se expressam de outras formas materiais. Enquanto companhia que sempre mostrou um interesse em aproximar seus artistas das platéias, a escolha parece sensata para a SPCD, mas, ao mesmo tempo, arriscada, sobretudo nesse programa duplo com Petite Mort, também de Kyllian, que vem na sequência.

O risco vem de que Petite Mort seja uma obra mais madura — inclusive, feita para o NDT 1 (o grupo ja pronto) — que é muito mais dançada no mundo, e não sem motivo. Seu tema é visualmente traduzido na obra, que tem uma discussão do masculino e do feminino, da dor e do prazer, e do orgasmo — através da expressão francesa que o qualifica como uma pequena morte, de onde vem o título. Vemos os homens com espadas, violentamente cortando o caminho pelo mundo, e mulheres presas em roupas que as restringem, das quais escapam por (e para) instantes de prazer e revelação.

Mais que uma abstração de amor, uma reflexão sobre dominação e êxtase é o que se coloca em cena, numa obra de Kylián que usa diversos de seus maneirismos, mas os transporta para um todo sensível. Esses maneirismos estão presentes tanto em movimentos quanto em props — acessórios de cena, que são recorrentes no trabalho do coreógrafo. Se, por um lado, elementos reconhecíveis são interessantes no tanto que delineiam a assinatura de um criador, por outro, eles frequentemente correm o risco da repetição exaustiva.

Em um catálogo tão grande quanto o de Kylián, é natural que encontremos figuras que se repetem, e que revelam interesses específicos do criador ao longo de sua longa carreira. No que trata da escolha e seleção de obras de um coreógrafo para compor o repertório de uma companhia nova, como a SPCD, esse tipo de repetição fica mais na cara. Por exemplo, aqui temos elementos que também se apresentam em Sech Tänze, obra de 1986 do coreógrafo e que integra o repertório da São Paulo — com muito gosto, e uma recepção bastante positiva do público — desde 2010. A coreografia, que esteve presente no programa todo-Kylián de 2015, também vai encerrar a temporada de junho de 2016.

Ainda que apresentem elementos repetidos, tratam-se de obras notavelmente distintas, mas que pedem um questionamento acerca de favoritismos ou preferências — não é possível não se perguntar acerca do projeto artístico de uma companhia paulista de oito anos de história, e que já insiste em tantas obras do mesmo coreógrafo. Dúvida válida ainda que estejamos falando de um grande nome como Kylián, ou mesmo se estivéssemos mencionando Balanchine (que também teve 3 obras no repertório da SPCD), ou Forsythe (2 obras no repertório da companhia).

Podemos tentar entender essas repetições como linhas mestras de continuidade. Elas estabelecem um terreno comum através das mudanças e alterações da companhia ao longo de seus anos de atividade, e, possivelmente, possibilitam um local de partida para os elencos novos e antigos se misturarem e contribuírem, além de oferecerem a chance de aprofundamento e desenvolvimento dentro de técnicas e estilos específicos — algo artisticamente rico, sobretudo numa companhia ainda jovem.

O risco desse procedimento é ilustrado pela estréia que encerra esse programa: Six Odd Pearls de Richard Siegal. Na mistura do trabalho que traz uma referência à experiência do coreógrafo com Forsythe e a desconstrução do movimento clássico, aqui colocado num programa junto de Kylián — que também trabalha a partir de um clássico enquanto técnica de origem e formadora —, encontramos uma obra interessante, bela, mas que não tem a força de suas pares.

Não que não haja valor. Há. A obra é permeada de duos e trios que incluem carregamentos e suspensões que prendem a respiração da platéia, um trabalho com o risco e a quase-queda que — quando não se torna queda de fato — enche os olhos e valoriza a técnica do elenco. Dialoga com o programa, no que diz respeito a um gosto especial pelas linhas no movimento, e com a trilha do conjunto, que nesta obra também usa música barroca.

Também há relações perceptíveis com as outras obras do programa, tanto no quesito da expressividade dos jovens bailarinos, como em Indigo Rose, quanto no que toca a construção do movimento sobre uma música clássica que mantém uma musicalidade intensa, mas não necessariamente uma tradução em movimentos daquilo que se ouve. E também no princípio da desconstrução do movimento clássico, que faz referência à formação do estilo de Kylián e ao estilo de Forsythe, que alimenta ambivalentemente, o histórico da companhia e o histórico do coreógrafo de Six Odd Pearls.

Pensando ainda no histórico da companhia, aqui começamos a ver programas mais delineados (e, nesse caso em específico, talvez até muito demarcados), sinal de que o tempo de trabalho e a experiência dos profissionais envolvidos já oferece opções para a escolha e a montagem das combinações que vão à cena: coisa que não seria possível nos primeiros anos de uma companhia, em que o que se dança é essencialmente tudo o que existe de disponível em seu catálogo. Agora, com um catálogo de impacto, as diversas tentativas e apostas (e os diferentes resultados e recepções) da companhia começam a se traduzir em escolhas, que se mostram na formação dos seus programas, e nos deixam ansiosos por cada anúncio de nova temporada, que revela um tanto de histórico e um tanto de novidade, construindo a continuidade desse grande projeto que é a São Paulo Companhia de Dança.

 

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