Críticas

Escondida, Contida, Explosiva

Repetitivo, mas com grand finale imperdível, o Programa 1 da temporada de 10 anos da SPCD traz três obras de Marco Goecke para o Teatro Sérgio Cardoso.

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A temporada 2018 da São Paulo Companhia de Dança, em que a companhia comemora seus primeiros 10 anos, abriu no Teatro Sérgio Cardoso com grande expectativa. Agora em junho, serão três programas e três estreias, mas nenhuma das estreias veio no programa de abertura, que preferiu abrir espaço para uma homenagem (?) a Marco Goecke, coreógrafo alemão que caiu no gosto da SPCD.

Os motivos para tanto são tão escurecidos quanto a iluminação (quase padronizada) de Udo Haberland nas três obras que compõe esse curioso conjunto. Não lhes falta qualidade, e são obras que, separadas, carregariam muito interesse. Mas são também muito parecidas, e muito repetitivas, e apresentadas nesse contínuo, ainda que despertem o interesse, deixam um gosto por algo a mais, que só poderá ser satisfeito semana que vem, com o segundo programa da temporada.

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A noite abre com a única criação de Goecke para a companhia, “Peekaboo”, de 2013, que parte do jogo infantil de se esconder e se revelar como premissa, refletida no uso do movimento especialmente sobre o rosto. Com o argumento infantil, seu longo gracejo nos coloca num campo despretensioso e descontraído, mas um tanto turvado pela temporalidade esticada na repetição constante de movimentos, em estruturas e vocabulários de um repertório bastante restrito.

Nesse formato, resiste, um tanto quanto escondido, o espaço para a expressão individual dos bailarinos, quando eles conseguem escapar das armadilhas do mecanicismo inexpressivo dessa proposta de gestos simples, encenada em uma estrutura de iluminação que parece a maré, indo e voltando, participando do jogo de achar e esconder. Esses são os melhores momentos, e eles têm somente ao elenco a agradecer.

Mistura-se ao gestual codificado um tanto de contorcionismo sem sentido, que parece colocado a gosto, para uma satisfação que se limita ao coreógrafo, mas ele não impede que observemos seus instantes de brilhantismo, como a cena que termina com a saída dos bailarinos, como se eles dissolvessem ao fundo do palco, tal qual suas mãos agitadas que se borram no movimento.

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Teria feito muito bem ao conjunto da obra a participação de uma equipe criativa brasileira. Não por uma defesa nacionalista, mas pela possibilidade de expandirmos esse horizonte construtivo que atravessa o programa todo e que soa terrivelmente repetitivo. Fosse esse o caso, talvez houvesse alguma distinção entre o seu repertório, e ai então poderíamos achar o sentido — que ainda falta — em vê-lo tantas vezes na mesma noite, dançado por uma companhia do estado de São Paulo.

“Pássaro de Fogo”, que dá sequência na noite, tem alguma distinção, a partir do movimento do pescoço, dos ombros, um de uso dos pulsos, que constróem, sim, pássaros, e cujas interpretações (de Ana Paula Camargo e Nielson Souza) apenas ficaram mais gostosas desde o ano passado, quando a SPCD estreiou a remontagem dessa coreografia de 2010.

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O que falta nesse pássaro, realmente, é fogo. A apoteose da peça é reduzida tristemente à trilha sonora — nada mais nessa obra é feito para ser grande. Há discurso de dramaturgia e propostas de entendimentos para a ideia, mas o pássaro de Goecke parece machucado e preso ao chão. Não levanta vôo, nem se expressa intensamente sobre o que quer que seja. Ele nos diz que é um pássaro, e nada mais. 

Falta-lhe muito para um projeto do tamanho da bagagem — icônica — que esse enredo, esse título e essa trilha carregam na história da dança. Também não se trata de uma obra ruim, mas de uma obra mal resolvida em seu tema. Especialmente nesse programa-homenagem, porque a repetitividade das estruturas a que assistimos coloca em evidência os deméritos da elaboração dos temas.

Se “Pássaro” tem braços e ombros, “Supernova”, que encerra a noite, tem pernas. Lindas, fortes, elaboradas, com acentos pontuados pra dentro e pro chão, que, no todo da movimentação, servem para mostrar a precisão atômica do elenco. Sacrificial, apocalíptica ou cosmogônica, é uma estrela que explode e talvez crie novos universos, bem explorados na cena pela coreografia e pelos bailarinos.

Aqui, reencontramos as dinâmicas que vimos nas obras anteriores, as insistentes entradas e saídas, e os trabalhos corporais, mas tudo parece fazer sentido. Não à toa, é a melhor das obras, a melhor das coreografias, tem os melhores figurinos, a melhor trilha e as melhores interpretações desse programa.

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Tem gosto de excelência, e é maravilhoso revê-la, agora com novas adições ao elenco. Mas é uma pena que isso aconteça nesse programa, que não chega perto da qualidade de seu programa de estreia na SPCD (a coreografia é de 2009, e entrou no repertório da companhia paulista na temporada de 2011, em que foi acompanhada por “Legend” de John Cranko, “Inquieto” de Henrique Rodovalho, e “Tchaikovsky Pas de Deux” de George Balanchine).

Vindo ao final, ela fecha bem a noite, e ja valeria a ida ao teatro. Mas não consegue evitar o gosto do “mais do mesmo”. Os duos, pontos focais das obras, aliás, ainda que interessantes, são todos pequenas variações de um só tema, e, em certo ponto, quase intercambiáveis. É fundamental observar, no entanto, que “Supernova” veio primeiro, e que é a melhor resolvida das três.

“Supernova” serve para mostrar que precisamos sim ver o trabalho desse coreógrafo. Que ele é interessante e tem promessa. Ela explica por que a São Paulo Companhia se fascinou por seu trabalho, e não há dúvida de que é uma das adições mais interessantes do repertório desses primeiros 10 anos. Porém, por mais que seja incrível — e ela é incrível — ainda não justifica que vejamos Goecke tantas vezes (e tão parecido), na mesma companhia, aqui e agora.