Críticas

Gnawa | São Paulo Companhia de Dança

De retorno ao Teatro Sérgio Cardoso para a temporada de Novembro, a São Paulo Companhia de Dança apresentou no primeiro de seus quatro programas desse mês um  recorte de seu repertório que conta com a estréia paulistana de The Seasons de Édouard Lock, e a reapresentação de duas outras obras da companhia: a recente Peekaboo, criada por Marco Goecke para a SPCD em 2013, e Gnawa, remontagem de 2009 da obra original de 2005 de Nacho Duato para a Compañía Nacional de Danza da Espanha.

Talvez a mais popular da SPCD, Gnawa é a obra mais antiga da companhia ainda em repertório (com os segundos lugares ficando para obras bem mais distantes, de 2012) e continua contagiando o público e recebendo considerável atenção e apreço, não perdendo em qualidade com o tempo e as alterações de elenco que por ela passam.

Curiosa essa durabilidade de uma obra, sobretudo num conjunto de coreografias que guardam uma vida útil de em média 3 anos, como se observa no repertório da SPCD. Talvez a proximidade que a mantém viva e bem seja a da movimentação proposta por Duato e de elementos da cultura corporal brasileira, ambas as intâncias apresentando alguns aspectos de matrizes africanas.

O tema, de característica ritual, desenvolve sobre os quatro elementos, sendo esses perceptíveis tanto em movimentação como em sonoridades e visualidades. A alteração da participação de um casal oposto a um grupo na dança ajuda na criação de ambientes de exploração variada, que conseguem trabalhar desde o fluido até o brusco. Os bailarinos percussionam a terra, nadam, planam. Existe algo que parece demandar a movimentação: uma devoção da dança e dos dançantes a algo maior, que reforça o aspecto religioso da obra – religioso no sentido do religare, da conexão com algo que é maior, místico.

O caráter das danças rituais, em que todos os presentes fazem parte do fenômeno, é estendido em Gnawa: não testemunhamos um evento – enquanto o vemos nos tornamos parte integrante dele. Há algo de quase sacrificial, mas que não se arma em um enredo, sendo contado apenas pela dança e pela música – ambas contagiantes – que completam a obra. Somos chamados a fazer parte, mas sem saber exatamente do que: ao mesmo tempo em que nos aproximamos do que se passa, somos interrogados pelo mistério daquilo. Gnawa convida e seduz, sugere e provoca o público, que, já há algum tempo, tem respondido positivamente a essa provocação.

Enquanto os conjuntos chamam o público ao rito, as coreografias para o casal criam a aura de intimidade da obra, em formas de contato a que assistimos invadindo uma privacidade exposta em cena. O sentido de invasão é alimentado pela separação entre o casal e o conjunto, que se articulam, mas não interagem, numa concepção segmentada que ajuda a tentativa de identificação dos quatro elementos em cena: os quatro coexistindo, mas não exatamente se misturando.

Quanto à movimentação, uma articulação das extremidades, uma proximidade corporal, e uma sensualidade, ligam a coreografia e os corpos dançando aos corpos dos públicos num sentido de comunhão. Fazemos parte desse segredo indeterminado, somos transportados para dentro dessa confraria dos Gnawa, aceitamos seus costumes, mesmo sem os conhecer ou entender. Somos provocados pelo desejo de conhecimento, de pertencimento, de descoberta – e assim a obra continua comunicando.

É interessante observar o tempo que essa obra tem durado, em especial com a boa recepção que tem tido. Fica um marco de continuidade na história da companhia que, ainda que jovem, já tem um tempo e um percurso consideráveis, que a esse ponto, já podem ser levados em conta para o entendimento de algo como uma proposta, um caráter da São Paulo Companhia de Dança, que tem se moldado desde 2008 e que guarda – aparentemente – algo de provocação, algo de descoberta e algo de pertencimento, que continuam contagiantes em Gnawa.

 

Programa 3 | 2014 da SPCD na imagem, The Seasons, de Édouard Lock, estreia principal da temporada
Programa 3 | 2014 da SPCD
na imagem, The Seasons, de Édouard Lock, estreia principal da temporada