“Agora” e de novo. Por favor, obrigado.
Leve e gostosa, a nova coreografia de Cassi Abranches para a São Paulo Companhia de Dança é para ser vista de novo e de novo. Inteligente, bem dançada e bem coreografada, reflete sobre os sentidos do tempo e nos mostra que a hora é agora: para essa obra e essa coreógrafa.
Quando começa “Agora”, que Cassi Abranches acaba de criar para a São Paulo Companhia de Dança, é o som das batidas de relógio da trilha sonora de Sebastian Piracés que nos transporta ao universo do tempo e de seus desdobramentos. Escolhido em sua polissemia como tema da obra, o Tempo se reflete em trilha, em coreografia, em corpos, em movimento.
A obra é dividida em três pedaços, ainda que inteligentemente mantendo a progressão contínua e inevitável do tempo que passa. No primeiro deles, um depoimento indireto de memória — para trabalhar ainda um outro sentido de tempo — à tradição de criação coreográfica da qual Abranches faz parte. Com 12 anos no elenco do Grupo Corpo, inevitável que algo da estrutura coreográfica de Rodrigo Pederneiras lhe fosse transmitido. Mas sua coreografia, ainda que da linhagem de Pederneiras, não é nem tenta ser Pederneiras. Ela tem novas formas de olhar o corpo e o movimento — formas que têm tudo a ver com a prática construída dançando.
Sem tentar fugir ou negar essa história, a coreógrafa sabe mostrar de onde veio e onde está: seu foco, assim como o dessa coreografia, é o agora. Quando ela trabalha, no primeiro dos momentos da obra, as construções entre o conjunto, os indivíduos, e as muitas possibilidades entre uma ponta e outra dessa divisão, ela nos revela a surpresa mais agradável de seu arsenal: saber coreografar grupos.
A observação parece boba, mas o fato é que há muito tempo sentimos falta de coreógrafos que construam para grupos, e não apenas para agrupamentos de solos simultâneos. Na coreografia de Abranches, há espaço para formar o conjunto, desmembrá-lo e reconfigurá-lo em combinações inúmeras, reagrupar, e mostrar o valor daquilo que mais me seduz em coreógrafos: a cabeça que parece operar em um nível completamente distinto do padrão, como se criassem e resolvessem constantemente quebra-cabeças de espaço e de corpos.
Tudo é uma questão de encaixes, e eles são demonstrados nas formas de articular os bailarinos em cena, e, insistentemente, em gestos e passos que ficam marcando algumas passagens. Dentre eles, o melhor é a sequência (para nossa sorte) repetida algumas vezes, de um salto feminino explosivo, que coloca as bailarinas na horizontal, quando encontram e se encaixam nos braços seus parceiros. Em uma das aparições desse salto, é a sequência de coreografia a partir dos braços presos pelos cotovelos que dá a Michelle Molina e André Grippi a oportunidade de nos mostrar o prazer com que eles se entregam e solucionam problemas de movimentação.
A satisfação no rosto dos intérpretes insiste em algo que o público também sente: essa obra é uma delícia. É uma delícia de ser dançada, uma delícia de ser ouvida, uma delícia de ser assistida. Tem aquele efeito cada vez mais raro, e insistente no trabalho de Abranches, de dança que não precisa ser pesada para ter conteúdo. Seus trabalhos são agradáveis, são desejáveis, e é isso que faz que sejam tão bem recebidos e tão bem apreciados — na estreia, antes mesmo da obra terminar a plateia já explodia em aplausos. Merecidos.
Se o tempo às vezes explode e dispara, por outras vezes ele parece contido e suspenso em meio à memória. Esse aspecto é trabalhado no segundo momento de “Agora”, em que a figura feminina interpretada por Ana Paula Camargo confronta uma lembrança, e depois nos retrata seu momento presente. Aqui a coreografia trabalha a contenção para fazer um tipo de gesto que tem a marca do passado, da lembrança, sobreposta à marca do presente, e parece nos falar também da passagem de Abranches do palco à coreografia.
Maturidade coreográfica é algo que, logicamente, se constrói em tempo e trabalhos, mas é fato que já passamos do momento de nos referir ao trabalho de Abranches como um de iniciação ou potência e assumirmos sua verdade: isso é coreografia de alta qualidade. Num curioso paralelo com o título da obra, a primeira vez que critiquei uma obra de Abranches, “Gen” (2014), eu a chamava de “bailarina-agora-coreógrafa”. A cena de “Agora” traz um tanto dessa raiz: bailarina, sim, e com todo o saber de sua prática, mas agora coreógrafa. E coreógrafa de coreografia para ser dançada com gosto — um trunfo seu em meio a uma seleta lista de novos-grandes-coreógrafos.
Íntima da obra e de sua proposta, a luz de Gabriel Pederneiras serve, mais uma vez, para organizar os meios como se dá forma ao tempo, tornando-se um elemento a mais da construção. Não se trata de ilustrar, mas de construir poética. A luz persegue o movimento da cena, recorta seu espaço, e inicia e termina com a reflexão perfeita do relógio — também discretamente colocado sobre o palco, com um fraco ponteiro de luz que vai marcando a passagem do tempo.
Entre as corridas de Yoshi Suzuki e a forma quase melancólica de percorrer o espaço de Nielson Souza, vemos a coreografia valorizar aquilo que é a cara da SPCD — seu elenco, seu frescor, sua juventude, sua disposição. Fica como um bônus que a obra, que trata de tempo, é precisa em seu tempo-duração. Nem mais, nem menos do que o necessário. Sem tempo para repetir o trivial, sem enrolar para ocupar espaço, sem precisar se alongar para cumprir um requisito. São 20min entre os mais bem trabalhados que recentemente subiram ao palco.
Da expectativa e da potência à realização concreta e deliciosa, “Agora” é depoimento positivo tanto da criatura como da criadora. As duas chegam ao palco prontas, com o conhecimento e o peso de uma história e um passado, num presente realizado e cheias de futuro. O lado positivo é que não precisamos ficar num eterno “aguardamos as próximas obras” — que aguardamos de fato, mas não porque esta ainda não seja boa o suficiente, mas sim porque esta nos mostra o tanto que ela já da conta de fazer.
“Agora” é daquelas obras que precisamos assistir de novo e de novo. E daquelas raras que me levarão ao teatro múltiplas noites na mesma temporada. Porque não dá pra esperar ela ser dançada outra vez, ano que vem: o que existe é o agora.