O corpo nu enquanto plano de ação é o pretexto de “Bondages”, obra em que Marta Soares parte de uma série fotográfica de Hans Bellmer dos anos 1950, para proceder a uma sequência de amarrações de seu próprio corpo, exposto sobre uma mesa, e registrado, tal qual a fotografia, por instantes de iluminação.
Com a mesa em cena, entramos no âmbito de mais uma platform piece que remete a “Vestígios”, obra de 2010 da performer, mas sem o espetacular que preenche aquela. Aqui, assim como o corpo, a cena é nua e silenciosa, e seu procedimento é simples: um contínuo amarrar, registrar, desamarrar, e amarrar novamente, que vai moldando o próprio corpo, apresentado como se fosse escultura, como se fosse peça de museu, disponível à observação.
No todo, trata-se de um ensaio plástico: a(s) forma(s) do corpo são exploradas pelo ato de dar forma(s) ao corpo. O fio de nylon usado cria novas dobras, novos vincos, para além daqueles que são naturais dos músculos e das articulações. Valorizam-se os contornos, numa estrutura em que não há acúmulos — os elementos são pouco reutilizados, e constantemente refeitos em novas estruturas, ainda que dentro de um aspecto contínuo e cíclico, favorecido pela iluminação de Aline Santini, que faz passar o tempo da obra como se fosse uma expansão do tempo do mundo, num contínuo crescimento e diminuição da luz principal, pautado por rápidos flashes de luz frontal, que congelam o corpo da intérprete no tempo, e o gravam na retina, como se fossem fotografia.
Há algo de muito específico nas performances de Marta Soares, que atrai quem se interessa por dança. Mesmo em uma proposta tão simples e despida como essa, o seu trabalho constantemente lida com as estruturas que organizam e possibilitam a existência da dança. Tempo, espaço, peso, fluxo e corpo se desconstroem e subvertem em seus trabalhos.
Restam limites, que ecoam velhas perguntas — de que precisamos para que se faça um espetáculo? Sua resposta parece se apoiar na espetacularidade inerente e inevitável da presença, mas lidando com ela de maneira bem mais interessante e inteligente que outros tantos artistas da performance: Soares não se faz objeto de observação, mas ponto de reflexão.
Desgostar de performance é algo até fácil: frequentemente, os performers parecem não se preocupar com o público, valorizando estéticas solipsistas em que aquilo que faz arte é o egoico “ser visto”. Porém, de forma muito sagaz, nos trabalhos de Marta Soares essa dinâmica é frequentemente invertida, e aquilo que faz arte é o “ver”.
Da mesma forma que o outro tipo de performance, este também demanda atenção e disponibilidade, esforço, paciência e reflexão de seu público. Mas ganhamos muito mais com estes trabalhos, porque mais do que um modus operandi, a observação ativa se torna uma verdadeira razão estética, e sua realização não se limita a nos dizer “eu mereço ser olhada”, mas aponta para aquilo que, às vezes de tão presente, pode nos passar despercebido. Assim, assistir a seus trabalhos é um constante processo de descoberta.