Críticas

Folk-s — Você Ainda Me Amará Amanhã? | Alessandro Sciarroni (Bienal SESC de Dança)

Investigando a memória das danças do Tirol, Alessandro Sciarroni apresenta um contínuo coreográfico para testar a atenção e a resistência do público e dos seus intérpretes. Pela primeira vez no Brasil, Folk-s integra a programação da Bienal Sesc de Dança, no Teatro Castro Mendes, em Campinas.

“Prova de resistência e memória (‘FOLK-S – Will You Still Love Me Tomorrow?’)”, escrita para o Criticatividade 

 

Quando entramos na sala para a apresentação de Folk-s, do italiano Alessandro Sciarroni, encontramos a platéia acesa, de contra, e um palco em penumbra, no qual mal podemos ver os seis intérpretes. Mas podemos ouví-los pisando o chão ritmadamente. Com um aspecto lúdico, como se tudo fizesse parte de um jogo, eles desenvolvem repetitivas, mas complexas, sequências de movimento, que trabalham a percussão do próprio corpo e do chão com as mãos e os pés, em estruturas folclóricas e de agilidade.

Com a iluminação gradativamente aumentando, desenha-se um círculo bem marcado em torno da cena, dentro do qual os bailarinos dançam, e percebemos que eles estão vendados, desenvolvendo seu jogo a partir do próprio ritmo, que mantêm constantemente, em articulações que já estão pre-determinadas, mas para as quais parece haver um espaço de mobilidade: os bailarinos se escutam, se percebem, se chamam, e propõem sequências que serão adotadas e repetidas pelos outros, em uníssono.

Dado momento, o jogo se interrompe, e um bailarino vem à frente para nos explicar o que se passa nessa obra. Eles dançam movimentos de danças típicas da região do Tirol, e continuarão dançando enquanto eles aguentarem, ou enquanto o público permanecer na sala. A proposta não é nova, mas se encaixa nessa obra tanto pelo seu trabalho físico com a exaustão corporal provocada pelo dinamismo do movimento, quanto pela sua proposta de discutir o tempo, com uma investigação que partiu do questionamento de como algumas danças sobrevivem e outras se perdem nos anos.

Vem dai uma outra regra que colocam à questão da duração da peça: tanto os bailarinos como o público são livres para deixar a sala. Mas, se o fizerem, não podem retornar. Prova de resistência, não chega à exaustão para a platéia porque a coreografia cansa os bailarinos antes. A movimentação é intensa e individual, ainda que a atenção no outro seja constante — e mesmo depois da cena inicial, quando eles não estão mais vendados, mantém-se a estrutura do jogo de grupo.

Tanto as estruturas rítmicas como as de movimento são altamente repetitivas. Há um conjunto de organização e de sequências dentro do qual eles trabalham, e a constância leva facilmente ao hipnótico. Vemos os bailarinos suando, na realização desse hiper-físico, mas é perceptível que a plateia começa a se desviar, celulares sendo acendidos pela sala e uma ou outra pessoa desistindo de acompanhar a proposta — o desafio da atenção existe tanto dentro do palco como fora dele.

No geral, o desafio corporal parece sustentar a atenção, resistindo ao tédio com novas fórmulas de posicionamento dos indivíduos no grupo e de ocupação do espaço, para além do círculo inicial. A iluminação segue essa ocupação, recortando o palco em vários formatos de luz, dentro dos quais os bailarinos agem. A ambientação sonora também se altera, passando dos ruídos ao eletrônico e do eletrônico à música pop, sempre acompanhada pela sonorização da percussão corporal.

A esse ponto, já estamos com o elenco reduzido pela metade: só três bailarinos continuam em cena. É especialmente interessante a percepção de espaço do grupo, porque independente de quantos bailarinos estão lá a cada formação, eles continuam lidando com o espaço em divisões precisas, sistemáticas, e atentas. Ao final da música pop, outros dois bailarinos deixam a cena, e ficamos com o último. Sua missão, um solo, curto, mas ainda mais físico que os anteriores, e que se realiza a esse ponto, após um esforço de quase uma hora e meia de trabalho em movimento contínuo. Terminada a sequência, encerra-se a obra.

Como o tempo é discutido em Folk-s? Pela estrutura da obra. Pela questão da continuidade e da insistência, da referência a algo do passado e que vai se perdendo com a saída de cada um dos bailarinos. Não exatamente coreograficamente: talvez haja módulos de coreografia que se perdem com a saída de cada bailarino, mas, à primeira vista, isso não se percebe. Sobretudo por essa estrutura com o solo final apresentando movimentos novos à coreografia.

Por um lado, parece que ainda que algo se perca, há algo que se ganha. Ainda que algo se esqueça, outras coisas surgem. E essa discussão, cara à contemporaneidade (mais do que à dança contemporânea), aqui se realiza estruturalmente. Não é especialmente inovador, ainda que seja desafiador para a realização e que seja gratificante assistir ao esforço. A questão da desistência se impõe à questão da exaustão, no que poderia ser lido como uma metáfora para como algumas tradições se apagam: não porque não consigam mais resistir, mas porque as pessoas percam o gosto ou a paciência por sua realização. E ai, nesse único ponto ou sugestão, uma possibilidade de ligar a obra à temática (não exatamente declarada) da Bienal de 2017: insistir, resistir.

 

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