Dança como sobrevida
Integrando poética e proposta, a Cia Sansacroma reflete sobre o genocídio do corpo negro, em raízes históricas que desenham também o presente da nossa sociedade.
Rasgando a luz sutil de Caio Marinho, de duas valas escuras surgem, aos poucos, corpos. São dois caixotes grandes de madeira que servem como caixão, e como metáfora da terra onde estão enterradas até 20 mil pessoas negras escravizadas mortas na viagem transatlântica de três meses ao Brasil — imagem do Cemitério dos Pretos Novos, que serve de ponto de partida para “Vala: corpos negros e sobrevidas”, criação de Gal Martins para a Cia Sansacroma. Não estamos num terreno fácil, não estamos num terreno feliz: “Vala” abre já com a cara da hostilidade histórica com que o corpo negro é olhado.
Atravessa o todo da obra uma sensação de solidão e dor, que contrasta com a força e a vivacidade que emanam dos próprios bailarinos dançando. Se a obra parte da morte, da injustiça e da perseguição, ela não se encerra nesses aspectos, e amplia a sua discussão para aquilo que vem depois, e que aparece já no subtítulo da obra como uma “sobrevida”. Todo corpo conta uma história. Mas como ficam essas 20mil histórias enterradas em valas?
A próprio ideia da sobrevida chama a atenção para um efeito cultural — memória como um processo conjunto, coletivo, social, compartilhado. As histórias individuais são também histórias coletivas, que são carregadas adiante e sobrevivem, mesmo com os que ficam para trás. Deixam escancarado um processo de genocídio, de extermínio cultural, que se coloca diretamente numa situação como essa que trata da morte, mas que faz parte de um tanto de estruturas e pensamentos sociais ainda extremamente presentes no nosso país e no mundo.
Enquanto processo de lembrança, a própria existência de uma obra como essa, numa cidade como a nossa, realizada com o apoio de um programa como o Fomento, também é um indício de sobrevida. Que grupos como a Sansacroma ocupem esse espaço é um dos indícios que nos mostra a força dessa sobrevida, mas também o quanto temos que fazer pra potencializar esses discursos, para não ferir o espaço dessa lembrança.
O que é mais interessante na obra é justamente a sua completa articulação entre artístico e social. A integração é tamanha que até pensar em “articulação”, que supõe unidades distintas porém associadas, parece uma palavra errada. Aqui, os dois elementos seguem e existem apenas juntos. A existência e a resistência estética desse tipo de proposta é a própria sobrevida que seu tema discute. Não há uma proposta artística desligada de um tema, assim como não há um tema separado de uma proposta artística. Não existe aqui nenhum indício daqueles trabalhos que às vezes vemos em dança contemporânea que estão “em busca de uma causa”. A causa é imediata, incontornável.
Ela é a vida e a sobrevida de todo aquele elenco e aquela equipe, mas também da plateia. Não existe um Brasil que não tenha passado pela escravidão. Sofrido, vivenciado, combatido, ou mesmo se beneficiado dela. Não existe um Brasil que se descole desse passado. Questões extremamente incômodas, e por isso frequentemente evitadas, também insistem em sobrevida, sobretudo porque se falamos de “sobrevida”, é porque a “vida” mesmo já pende sob ameaça. E mesmo para aqueles pra quem essa não seja uma questão de ameaça pessoal, ainda há muito pra refletir sobre a ameaça coletiva, e como a nossa própria existência colabora com essa situação.
Quando a dramaturgia de “Vala” insiste nas estruturas que se repetem, é difícil não fazer a ponte com as repetições das estruturas sociais que são discutidas. Quando a excelente cenografia e a luz nos levam para o sombrio, é difícil não fazer a ponte com a memória trevosa. Quando chegamos ao final e esses corpos ressurgem mais resplandecentes, brilhantes, adereçados, e temos um vislumbre de luz, é difícil não encontrar o impasse. Há esperança, há sobrevida, e essa sobrevida pode um dia ser linda, plena, realizada. Mas é preciso manter viva a memória da vala, dos erros, das dores. Pra que certas coisas não se repitam, pra que o dedo na ferida nos lembre que o nosso coletivo é formado de muitos coletivos, e que alguns deles foram roubados de muita coisa, inclusive memória. E a dança e a arte da Sansacroma seguem cumprindo um papel de compartilhar em cena a sua história, que é a nossa história, junto com seu presente, que é o nosso presente.
Direção Artística, Direção Coreográfica e Concepção: Gal Martins
Direção Coreográfica: Djalma Moura
Intérpretes Criadores: Aysha Nascimento, Cristiano Saraiva, Djalma Moura, Erico Santos, Marina Chagas, Regina Santos, Sabrina Dias, Victor Almeida e Tiago Silva
Trilha Sonora: Dani Lova e Fefê Camilo
Figurinos e Adereços: Gil Oliveira
Projeto de Luz e Cenografia: Caio Marinho
Engenheiro de som Danilo Santana
Preparação Corporal: Djalma Moura
Fotografia: Lua Santana
Direção de Produção: Vanessa Soares – Movimentar Produções
Assistentes de Produção: Dani Lova e Tonny Antonyo
Mídias Sociais: Elo Negro Comunicação
Assessoria de Imprensa: Lau Francisco
Design: Lais Oliveira
Apoio: Fomento à Dança de São Paulo