Críticas

Violin Phase | Rosas

Abrindo o Paris Quartier d’Été de 2015, Anne Teresa De Keersmaeker dançou três vezes um de seus primeiros solos, Violin Phase, desenhando no chão coberto de areia debaixo das ogivas em rosáceas da Église St-Eustache em Paris. A emblemática criação de 1981, crítica nova do Da Quarta Parede, continua discutindo aspectos da pós-modernidade em dança e do projeto artístico de uma das mais reconhecidas coreógrafas da atualidade.

Violin Phase é um solo de Anne Teresa De Keersmaeker, criado em 1981, e posteriormente incluído como a terceira parte de Fase: Four Movements to the Music of Steve Reich, obra do ano seguinte, e que deu início à companhia ROSAS da coreógrafa belga. O todo de Fase vem de uma afinidade da coreógrafa com o trabalho do músico estadunidense. Depois da formação de De Keermaeker na Mudra — escola de Maurice Béjart — ela passa um ano em Nova Iorque, estudando na New York University. Quando ela vai da Bélgica para os EUA, a coreógrafa já tinha o desejo de trabalhar com as composições de Reich, e Violin Phase, criada por ela durante aquele ano, é sua primeira realização desse desejo.

O trabalho de Reich, de música minimalista e modal, é frequentemente percebido como frio e distante. É o interesse na oposição dessa frieza à característica de força e de presença que a coreógrafa nota no trabalho do compositor que lhe provocam para a criação da obra. Trabalhando a partir dos propósitos musicais percebidos nessa obra, De Keersmaeker propõe uma construção cumulativa, que articula as perguntas e respostas básicas de sua pesquisa coreográfica: o que é a dança?; é movimento, é andar, girar, pular.

Ela usa movimentos simples, apresentados e reapresentados dentro de contextos de repetição, de continuidade, de mudança gradual e de acúmulo, desenhando — tanto no piso de areia da obra quanto no espaço cênico como um todo — um círculo, dividido em oito partes. Inicialmente, o movimento, construído no vai-e-vem e na oposição de direções — elaborações a partir do movimento natural de caminhar — cria no chão o círculo, composto de traços arredondados, percorrido diversas vezes pela bailarina. Na sequência, ela usa de quatro variações diferentes para traçar e retraçar os oito trechos que vão do centro do círculo até suas bordas.

Assim como a música, visualmente a coreografia reconstrói os processos de phasing (ou defasagem), com uma sequência inicial de movimento que é pouco a pouco alterada, a partir da introdução discreta de um novo elemento, que vai se tornando predominante até dominar completamente a sequência, forçando sua nova forma. Com esse procedimento, é possível criar a obra a partir de uma quantidade mínima de movimentos. Aqui, já temos anúncios da prevalência do papel da matemática e da análise combinatória que se tornaram marcas do trabalho de De Keersmaeker.

Esses elementos, carregados de simplicidade e de minimalismo, identificam um estilo que está mais interessado nas possibilidades de realização e de transmissão de conteúdos pela dança do que na repetição de fórmulas dramáticas já consagradas. Tal qual a música que inspira a obra, podemos pontuar o trabalho de De Keersmaeker como ligado às estruturas do pós-modernismo na dança: temos discussões de limites, de características fundadoras, de princípios que regem a organização da criação artística, e um certo gosto pela exploração, que tende mais ao racional do que ao emotivo.

Não à toa, a coreógrafa se tornaria eventualmente reconhecida como uma criadora bastante cerebral. E, questionada sobre seus processos e sobre os elementos de suas criações, frequentemente é fácil para quem a ouve se prender às observações processuais e ignorar as possibilidades de representação que esses elementos causam no público.

Violin Phase, e a obra Fase, como um todo, representam caminhos de pesquisa que marcam o território da coreógrafa e de sua companhia. Tal qual os desenhos no chão, vemos aqui a inscrição na história de um processo de interrogação sobre a dança e sobre suas possibilidades que continua bastante presente em seus trabalhos. Depois de Fase, Reich viria a servir outras vezes como trilha sonora e inspiração para as criações de De Keersmaeker, assim como os processos de phasing, de alteração cumulativa e de insistência, de elaboração geométrica e matemática.

Não há enredo. Não há personagem. Há simplesmente dança. Construída matemática e milimetricamente para funcionar, sem necessariamente impactar o nível emocional do público. Um pouco mais pra frente, na carreira da coreógrafa, são encontrados outros princípios de trabalho, que vão provocar novas áreas da percepção. Mesmo no todo de Fase já é possível apontar o que pode ser tido como além do racional puro. Mas, isolando Violin Phase, encontramos uma obra que, há mais de três décadas, serve como resposta a certos questionamentos acerca de alguns dos limites da dança.

Depois do classicismo e do modernismo; dos mitos, das princesas, dos heróis e dos sentimentos retratados pela dança; encontramos um momento de questionamentos. Diversos criadores vão despir suas obras dos elementos considerados fundamentais para a dança e experimentar, dentro dessas novas condições, o que sobrevive. Violin Fasenão é uma obra de negação. Não é uma obra completamente desprovida de qualquer elemento historicamente constitutivo da Dança. Ainda há um trabalho intenso com a música como inspiração, uma pesquisa de ritmo e de formação visual — tanto corporal quanto cênica. Mas é uma daquelas obras que limpa o palco de diversos outros pontos, tradicionalmente considerados colados à dança. Juntando a isso a interpretação, que sobrevive e se refaz constantemente há mais de três décadas, não é difícil entender os motivos dessa obra se inscrever tão intensamente — como os pés se arrastando pela areia — na história, e na memória de suas platéias.

 

Violin Phase

 

 

Fase, Four Movements to the Music of Steve Reich pode ser encontrada facilmente em video, na produção que Thierry de Mey fez em 2002 para a ROSAS. O registro funciona como uma instalação video-coreográfica, não sendo simplesmente uma captura da apresentação cênica dos quatro movimentos e incluindo direção de câmera e alterações cenográficas, mas apresentando um acesso interessante para essa obra e para o estilo da coreógrafa.