Críticas

Mulheres que não se calam

Em “ Estou Sem Silêncio”, as novas mulheres da Quasar tomam a voz, para enfrentar medo e ameaças.

Numa companhia historicamente guiada por grandes bailarinas, repetir a fórmula de um elenco todo feminino, como acontece em “Estou Sem Silêncio”, é um espaço de reconhecer o lugar da mulher, e de uma forma bastante positiva: dando voz a elas.

O efeito de um diálogo com a história é incentivado pela primeira cena do trabalho, que recupera uma referência a “Céu na Boca”, de 2007. Aqui, já vemos um traço da escrita do coreógrafo Henrique Rodovalho, que tem um gosto franco pelo cômico e pelo uso do humor em cena. Mas em “Estou em Silêncio”, sempre que uma construção esbarra no humor ou na leveza, ela é brutalmente trazida para uma realidade mais dura e pesada.

É um ataque, sofrido pelas bailarinas, numa cena ao som de piano que se repete ao longo do trabalho. Nela, vemos corpos que são batidos por um outro que não entra no palco, só representado por uma luz, angulosa, na direção das bailarinas, que reagem, em corpos violentados, e que buscam as formas de se expressar.

O sentido do todo parece ser claro: a vida acontece apesar desse tipo de situação, e seu terror não muda a profundidade dessa existência multifacetada, do mesmo jeito que essas outras facetas não apagam seu assombro.

Se na estreia em São Paulo, no ano passado, a gente observava a obra notando o estado em processo da assimilação da forma de movimento da Quasar, a esse ponto ela não parece mais um objetivo. Ainda estão em cena a segmentação do corpo, a decomposição do movimento, as curvas e quebras inesperadas, o trabalho no espaço negativo do corpo do outro, o tempo do gesto se construir em cena. Mas as tônicas aqui estão longe de ser a movimentação pura.

Esse elenco toma voz, e o conjunto não se faz homogêneo. A individualidade é aproveitada para para desarticular a coreografia, e o aspecto contra o uníssono, que foge do síncrono, acaba reforçando uma partitura de movimento diretamente afetada por cada uma das intérpretes.

Esse reforço do lugar das intérpretes como sujeito aparece em diversos níveis. É ele que é responsável, por exemplo, pela evolução das cenas da ameaça. Na terceira vez em que ela chega, as bailarinas já não fogem mais da luz. De mãos dadas elas se fazem apoio e contrapeso, e avançam em sua direção, enfrentando a ameaça.

Essas cenas ficaram especialmente boas para serem vistas na filmagem, transmitida ao vivo pelo CCBB, do palco em Brasília. Movendo pelo espaço, a câmera aciona outros ângulos, que alongam as luzes e dão ênfase a certas colocações do corpo no palco, que não veríamos ao vivo, de só uma posição na plateia.

Quando avançamos para o final, e chega a última das cenas de ameaça, não há mais medo, e com um corte brusco as bailarinas passam a uma caminhada para o fundo do palco, despindo-se de uma última camada de figurino, que deixam pra trás, quase sem olhar, no que provavelmente é o maior tom positivo do trabalho.

Reconstruindo suas próprias referências, essas mulheres não se calam. E falam por si,  para chamar a atenção pra tantas outras histórias, às vezes disfarçadas entre tudo o mais que existe na vida. Um futuro feminino, que espelha, em pontos distintos, mas interligados, o passado da Quasar, também notável em sua feminilidade.