O que precisamos e queremos guardar
Feliz e inesperado, o retorno da Quasar aos palcos com ‘O Que Ainda Guardo’ refaz trajetória de Henrique Rodovalho e insiste na importância dessa companhia.
* escrito para o Criticatividade
O retorno da Quasar aos palcos, depois de longa pausa, é um misto de felicidade e preocupação. Preocupação com a nossa arte e os nossos artistas — quando deixamos uma companhia desse gabarito e desse repertório e expressividade parada, por diversas situações. Felicidade porque eles são feitos de matérias mais dura, insistem, continuam, abrem caminhos, descobrem novas formas de continuar fazendo aquilo que fazem de melhor.
As parcerias, já no ano passado apontadas como uma grande tendência do momento da nossa dança, este ano estão ainda mais fortes, e é em uma dessas que, com o apoio do Preciosidades Vivara, a Quasar pode voltar à cena, com “O Que Ainda Guardo”. Da poesia do título, a reflexão e a expectativa inevitáveis, sobre tudo aquilo que sabemos do trabalho de Henrique Rodovalho, coreógrafo da companhia, e Vera Bicalho, sua diretora.
Do apoio da joalheria vem o tema, a Bossa Nova, que não é estranho ao universo da Quasar: foi trilha de “Só Tinha de Ser Com Você” de 2005, que guarda outras semelhanças além da música com esse novo espetáculo, que mistura delicadamente várias referências passadas, com novas propostas e linhas, novas estruturas e formações coreográficas.
A impressão geral, é a de que olhamos para uma coleção — de jóias, para emprestar do universo. Algumas relíquias de família, algumas carinhosamente acumuladas com o tempo, outras tantas novas adições, num todo que é único, específico, pessoal, distinto. Rodovalho, que também assina a luz, como de costume, tem suas marcas visuais. Dinâmico e por vezes ríspido, no movimento e também na iluminação, vai alternando o difuso e o focal — ora nos dissolvemos no todo, ora nos concentramos no detalhe. A proposta é ajudada pelo figurino e pelo cenário, metamórficos, que adicionam dimensão e ilustram um conceito, transportam a esse lugar que tem uma referência clara nessa música, mas também tem uma referência nas joias, na preciosidade, e, maior que todas, uma referência na Quasar.
À leveza que impõe a Bossa se contrapõe o peso característico das relações, como Rodovalho habitualmente as encena. Sua expressividade, pautada pela rearticulação do corpo e destaque de suas partes é capaz de dominar o lento, de forma que seu tempo e suas sensações em cena têm um uso que não é o do cotidiano.
Como, então, fazer propostas tão pensativas se relacionarem com o público, sem criar a barreira que vemos em muita dança contemporânea, e que nunca foi problema para a Quasar? Com genialidade. Com a sutileza do cômico que é própria do criador, com a exploração do cotidiano, do lugar-comum, do ordinário — elementos também fundamentais para a Bossa Nova, e sua temática inteiramente anti-épica e empática.
Assistir ao trabalho de Rodovalho é sempre uma aventura. Não porque ele nos conte os grandes feitos de grandes heróis, mas pela capacidade de desvelar a mística por trás do dia-a-dia. Seu olhar vê o mundo e nos devolve o mundo, em toda sua grandeza e, ao mesmo tempo, simplicidade. Tudo parece uma grande brincadeira séria, um daqueles instantes de risada compartilhada e de percepções de beleza nos lugares inesperados. Rodovalho nunca precisou de grandes efeitos, sua visualidade é centrada no corpo e suas capacidades, e ai está sua excelência.
O heróico aqui se limita ao fazer a obra acontecer. Com a companhia desmontada, sem elenco nem equipe trabalhando continuamente, monta-se um time, no qual a grande força é a empatia, a vontade, o amor pelo trabalho. Não é surpresa que vemos tantos nomes voltando para essa ocasião. A Quasar merece. São 30 anos de pesquisa que fazem parte da assinatura da dança brasileira — uma das assinaturas de movimento mais reconhecíveis e mais imitadas, importante frisar.
Se a saudade é tema recorrente da Bossa, ela também se recupera nesse momento todo, de trazer a Quasar de volta. Se a obra, pelos efeitos de seus processos, ainda tem a cara de inacabada, de incompleta, isso não é estritamente um demérito: a Quasar também está incompleta e inacabada — ela tem muito a nos mostrar, muito a nos dizer. As cenas reaproveitadas de obras passadas servem para nos mostrar o quanto de seu repertório é ainda relevante, e merece ser dançado, e precisa ser visto. Os toques de novidade, sobretudo nas estruturas de grupo, que vimos também em outra criação de Rodovalho desse ano (“Melhor Único Dia”, para a São Paulo Companhia de Dança), ilustram alguns novos caminhos, novas dinâmicas, as potências de continuidade, e uma permanente jovialidade.
A isso, soma-se o desafio do sotaque coreográfico da companhia. Dançar a Quasar é um trabalho de vida, que não se realiza plenamente só nos três meses que teve essa produção. É um projeto que fica no aguardo de mais tempo para poder continuar sua missão. Enquanto a oportunidade dessa parceria serve para trazer a Quasar da memória à presença, os votos são intensos de que esse episódio se transforme em permanência. Afinal, é esse o sentido da preciosidade, não só aquilo que ainda guardamos, mas o que precisamos e queremos guardar.