Críticas

Arte em protesto

Faro de direção e um elenco fresco fazem a boa combinação de “Vagabundos”, que Andréia Pires trouxe para o Sesc 24 de Maio.

A arte de protesto sofre de um mal recorrente: o risco de ser entediante. Isso acontece porque os problemas sobre os quais se pode protestar, ou nos tocam — e ai correm o risco do repetitivo, do já debatido, do chover no molhado — ou não nos dizem respeito — e ai correm o risco de não transmitir a empatia necessária para que nos importemos com eles.

Ainda pior, a arte de protesto frequentemente esquece dos meios e dos valores da arte, para focar nos meios e nos valores do protesto. Nesses casos, encontramos obras desequilibradas, às vezes ótimas como reflexão, mas ainda verdes como obras. “Vagabundos”, de Andréia Pires escapa desses dois perigos.

Seu maior trunfo é o frescor, que, nessa obra, vem da combinação de sua direção com seu elenco. São intérpretes jovens, e ainda inexperientes do peso dos nossos palcos, mas é por sua entrega e sua crença naquilo que apresentam que podemos partilhar desse universo instantâneo, reflexo do cotidiano e de um acúmulo que sobrepõe influências, referências, missões e desgostos — pessoais, culturais, sociais, políticos, nacionais…

O valor desse elenco se vê desde a primeira cena, em que duas bailarinas, destaques em meio ao numeroso elenco, contam uma história completamente absurda, que serve para dar o tom do universo retratado pela obra: um momento sócio-político em que o absurdo e o inaceitável se converteram em cotidiano, em norma, em expectativa, e o sentimento dos sujeitos que se perdem e se desfazem em meio a isso é o do apagamento.

São novas leituras e novas formas de se pensar a representação dos movimentos das jornadas de junho de 2013, momento de gestação do trabalho dentro da Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Ceará. A ocasião ainda é lembrada como um ponto alto na história recente, em matéria articulação de diversas massas brasileiras contra várias situações de rejeição e abandono político-social.

Essas leituras se fazem ainda mais relevantes com a obra se apresentando no meio do inflado (e inflacionado) carnaval paulistano de bloquinhos, e no Sesc 24 de Maio, entre dois pólos do centro histórico de São Paulo tomados pela multidão carnavalesca, a passos da Praça da República e da Praça Ramos de Azevedo. Mais ainda, estamos a dias dos eventos do “Golden Shower Gate”, que colocou o Brasil e seu governo de volta à atenção da mídia internacional, como alvo de vergonha.

Aqui, o abjeto encontra um lugar. Mas não o abjeto do desgosto, e sim o abjeto do rejeitado. Entre foliões e moradores de rua, os intérpretes estão suspensos na realidade da obra — em si metáfora da realidade de fora dela. O questionamento é qual seja o corpo da manifestação. Entidade mista, um tanto de imaginação, outro tanto de realidade, recoberto de um sentido de justiça que tristemente soa utópico. Ele mistura o pessoal e o universal, o social e o político, ele dança palavras de ordem que a gente não precisa ouvir.

“Não há motivos para pânico, está tudo sob controle”, eles nos dizem. Mas o sentimento, mesmo entre as fugas para o cômico, é o do desespero. É o pânico de perceber que rir (de nervoso) às vezes é a única reação que conseguimos esboçar frente a nossa realidade.

A alegoria do palco nos atravessa enquanto sujeitos. Enquanto brasileiros, enquanto minorias e maiorias, privilegiados e desprivilegiados, enquanto grupos e indivíduos. Ela empresta nossos corpos e os rebate ao palco, tomado por peças de roupa que são constantemente manipuladas pelos bailarinos, criando parte do efeito de multidão que a obra explora, nos incluindo em sua cena.

Só diminuem o impacto da cena as ocasiões em que um ou outro interprete revela por demais seu despreparo, escapando do frescor para o amador. São risos nervosos, transformados em escapadas cômicas, que até fazem parte da obra, mas de uma forma diferente: eles são por vezes a única saída da plateia, confrontada com o tamanho desse momento trágico que nos é exposto. Em cena, porém, aos artistas não se reserva esse privilégio. como eles decidem nos apresentar esse material, e trabalham por sua familiarização com o mesmo, o riso acidental em cena é um demérito, que tira da força enorme que o todo apresenta.

Mas tratam-se de instantes, e que não apagam o conjunto valoroso que encontramos em cena. O maior dos impactos é o faro de Andréia Pires para a direção. É inevitável sair dessa apresentação com dois questionamentos. O primeiro deles, interroga de onde vem essa potência, nessa disciplina tão trabalhosa que é a direção de grupos. O segundo, de ordem mais prática, é qual dos grupos daqui vai primeiro chamá-la para uma colaboração. Porque se isso é o que ela faz com um grupo saído de um contexto de formação, a expectativa para o que ela seria capaz de fazer com o elenco de uma grande companhia é imensa.

Não se trata de dizer que todas as cenas e todas as escolhas são acertadas. Há aquelas de uma simplicidade eficiente, como uma sequência que acumula notícias de crimes e desajustes sociais com o elenco comendo, como se assistissem à televisão, numa boa reflexão sobre o processo grotesco da naturalização cotidiana daquilo que é socialmente inaceitável.

Enquanto, por outro lado, há também um ou outro shtick cômico que têm seus efeitos, mas às custas de um tanto do nível do trabalho, como o pedido de “um minuto de silêncio pelo desmonte da democracia no Brasil”, que falha ao esquecer o papel dos intérpretes em nos levarem a essa construção poética, simplificando essa missão com o instrucional que só nos diz “vão lá”, apostando no chavão, mas não na pavimentação desse caminho estético.

Na balança, porém, os acertos são muito maiores, porque, no todo, a importância do “levar o público à construção” parece ter sido uma pauta insistente no desenvolvimento da obra, que nos afirma, sem sombra de dúvidas — e contrariamente ao tanto de manifestos em arte chatos a que temos assistido por aqui — que (ainda) é possível falar do mundo no palco, e através das estratégias do palco e da arte.

Se ali se retrata uma forma de destruição (do sujeito, da vida, do palco, da cena), o valor maior da obra, curiosamente, é a construção. Mistura inteligente entre uma direção aguçada e um elenco disposto, “Vagabundos” mostra potências de longe de São Paulo, que são sempre bem-vindas, e cuja falta sempre sentimos.