Críticas

Répliques / Salut / Together Alone / AndréAuria | Ballet de l’Opéra National de Paris

O mais recente programa misto do Ballet da Ópera de Paris é um programa de virtuose. Originalmente concebido com três obras, Répliques de Nicolas Paul (2009), a estréia de Salut de Pierre Rigal, e AndréAuria de Édouard Lock (2002), teve uma quarta coreografia adicionada à noite, o duo Together Alone, criação do atual diretor artístico da companhia, Benjamin Millepied.

Com essa inserção, Millepied deixa sua marca em meio a um programa que carregava intensamente a assinatura de sua predecessora, Brigitte Lefèvre, diretora da companhia de 1992 até outubro de 2014, e, portanto, responsável pela curadoria da temporada 2014/2015 do Ballet. A presença de Lefèvre no programa é inegável: todas as coreografias da noite – incluindo a de Millepied – são de coreógrafos que entraram para o repertório do Ballet de l’Opéra durante a longa direção de Lefèvre.

Um programa de criadores contemporâneos e com projetos e propostas diversos, que deixam bem marcada a pergunta acerca do que seja que os une e transforma essa reunião de obras em um programa. Uma questão que sobressai das obras, é a relação do intérprete com a técnica. Cada um a seu modo, os criadores das quatro coreografias estão apresentando pontos de vista individuais sobre o trabalho com os elementos técnicos da realização da dança.

Assim, há algo de renovação dos gêneros da dança que se apresenta nesse programa, num contraste com algumas das obras mais clássicas da temporada: traço que foi a marca das temporadas programadas por Lefèvre para a companhia, e que aqui aparece destacado, em sua última programação.

Répliques de Nicolas Paul, é uma coreografia quase silenciosa que coloca em cena relações de espelhamento, e criações de duplos. Inicialmente organizada em dois conjuntos de quatro bailarinos, se transforma em quatro casais, distribuídos ao longo da profundidade do palco, como se em níveis. Progressivamente, telas vão descendo e criando corredores que limitam os espaços de cada casal e a visibilidade que temos deles. A articulação entre os dois bailarinos de cada casal, e os casais de uma a outra profundidade, cria um jogo.

Com a exploração do palco em níveis, temos a impressão de estarmos colocados entre dois espelhos, e a movimentação dos bailarinos constrói e desconstrói essa percepção, numa relação intrigante e provocativa que chama à atenção o quanto se cria e o quanto se copia em relações interpessoais. Fica claramente estabelecido um diálogo, e a alternância dos níveis coloca o público em diversos lugares diferentes, prontos a interagir e a responder ao que aparece em frente.

Salut, de Pierre Rigal também tem um diálogo, mas, dessa vez, é um diálogo do bailarino consigo mesmo. Ponto alto desse programa, a obra começa pelo fim: a cena começa com os bailarinos agradecendo, como se fosse o fim de uma apresentação. E todo o desenrolar da obra tem os bailarinos progressivamente se despindo, ou pelo menos tentando se despir.

Desmontando os bailarinos, Rigal tira o foco das personagens e trata do processo difícil de vestir e despir a personagem. Questionamos onde começa o enredo e onde acaba o bailarino, e o parto – e seu processo reverso – de entrar em cena e sair de cena. A mecânica robótica dos movimentos dos agradecimentos (que remonta às tradições do clássico, bem colocadas no contexto da Opéra de Paris) mostra um estado de passagem que precisa de um meio termo, o qual nem sempre é encontrado. Só tirar os figurinos não basta. Ainda é preciso despir uma história. Uma experiência que é carregada por cada bailarino, no próprio corpo, ao longo da vida profissional, e, ao mesmo tempo (e no mesmo corpo), na vida pessoal, fora do palco, do teatro e da personagem.

Essa ideia da vida, do tempo e do hábito, é construída também visualmente na cena. O palco tem uma luz forte e redonda ao fundo, algo entre um foco e um sol, que vai se pondo ao longo da obra, com uma nova estrutura que sobe em seu lugar, numa luz azulada e fria que lembra uma lua. E o trabalho e o esforço dos bailarinos continua. Ainda que o andamento da obra seja bastante ralentado, mostrando um processo que se arrasta e que resiste – não um corte abrupto – a obra passa depressa. E quando chegamos aos agradecimentos de Salut, fica uma dúvida sobre como responder. Sabendo da intimidade do processo que ali se inicia, a obra estabelece um ciclo, e, mesmo terminando, recomeça. Amarrando as duas pontas da coreografia, Rigal deixa um grande questionamento sobre os artistas para seu público.

O único incômodo de Salut nessa temporada é sua colocação no meio da noite. A grande quantidade de reflexão que a obra propõe é violentamente cortada pelo social do intervalo, e pela sequência de obras que seguem na noite.

A intervenção de Millepied, Together Alone, mantém um formato já muito testado pelo coreógrafo: dois bailarinos em focos móveis e um piano. A música de Phillip Glass dita o tempo ágil da descoberta e exploração do espaço. Em certo ponto, é difícil falar de “mais uma obra contemporânea sobre relações de um casal”. O fato de que o mais interessante do trabalho é a qualidade de sua execução e a fluidez do movimento trabalhado por duas das estrelas da Ópera, uma delas a atual Maître de Ballet da companhia Aurélie Dupont, não facilita a discussão.

Aqui, temos grandes bailarinos em uma grande performance. Quanto às propostas do coreógrafo, a fluidez de seus movimentos, aqui retomada, é uma marca já reconhecível em seus trabalhos. As combinações dos levantamentos e corridas, com a exploração do espaço, as formas de encaixe dos corpos em cena, e mesmo a apresentação e posicionamento dos corpos, remetem diretamente às tradições de Balanchine e do New York City Ballet, onde o próprio Millepied teve a maior parte de sua carreira como bailarino.

Usando dois bailarinos que também têm uma vasta experiência com obras de Balanchine, e que haviam dançado em 2014 os papéis-título da obra de Millepied para o Ballet de l’Opéra, Daphnis et Chloé, não há grandes surpresas. Há um padrão de qualidade que é mantido e respeitado, mas pouca novidade: o que vemos é um pouco mais do mesmo.

Encerrando o programa, vem a remontagem de AndréAuria de Édouard Lock, coreografia criada para o Ballet da Ópera de Paris em 2002. O coreógrafo, que nos anos 1980 fez parte do que foi então chamado de uma estética do choque, ficou reconhecido por seus trabalhos com seu grupo canadense, LaLaLa Human Steps, e pela parceria com a bailarina Louise Lecavalier.

Aquele trabalho, com o risco, a violência e a queda, foi radicalmente alterado no início dos anos 2000. Em Amélia (também de 2002), talvez a obra de maior repercussão do coreógrafo, ele propõe o uso de sapatilhas de ponta para explorar as possibilidades da velocidade do movimento e das características técnicas que podem fazer o bailarinos serem vistos como sobre-humanos.

AndréAuria carrega muitas das ideias daquele trabalho sobre a forma de articular e de movimentar os bailarinos. Mesmo em elementos visuais, há uma manutenção da incidência de luz e da forma dos figurinos, que marcam e recortam os corpos das bailarinas. Coreograficamente, algumas das melhores passagens de AndréAuria remetem diretamente à Amélia, o que se compreende pelo contexto de criação e continuidade das obras dentro da proposta do coreógrafo, que não mudou muito desde então.

Aqui, ele trabalha os focos de luz que vêm diretamente de cima dos bailarinos, em angulações diversas e que se alteram para estabelecer um diálogo de luz e sombra com a ocupação do espaço e a música executada ao vivo em dois pianos, enquanto painéis sobem e descem aos lados da cena. Em questão de movimentação, essa (naquele momento) nova tendência do coreógrafo, mostra a passagem de uma transformação do risco em dança (nos anos 1980 os bailarinos de Lock se lançavam e se carregavam e caíam, violentamente, fazendo dança a partir do risco) para um aumento do risco da dança (aqui, a dança parece ser feita apesar do risco – o risco existe, mas não se evidencia).

Novamente, vemos as sapatilhas de ponta, as alterações bruscas de direções e a velocidade dos movimentos. Em um paralelo, é difícil não pensar em William Forsythe, e em obras como In The Middle, Somewhat Elevated, que também foi concebida para a Opéra de Paris. Porém, nessa comparação AndréAuria fica um pouco para trás. Ainda que possivelmente mais rápida, ela não marca, nem em 2002 – momento de sua criação -, nem agora, com essa remontagem, algo de tão surpreendente. É uma continuidade do projeto de Lock, porém realizada para outra companhia, o que, em si, já faz questionar sua colocação dentro de um repertório como o do Opéra. Por outro lado, seu trabalho com o virtuoso, com as proezas de movimento, traz sentidos para essa ligação. E, sobretudo, fala sobre porque ver essa obra, neste programa, neste momento.

 

Paul, Rigal, Lock