Críticas

Paquita | Ballet de L’Opéra de Paris

Da versão original de Paquita, coreografada em 1846 por Joseph Mazilier para o Ballet de l’Opéra de Paris, são poucas as fontes que sobreviveram ao tempo. A coreografia,  que foi retirada do repertório do Opéra em 1851, foi apenas parcialmente preservada na Rússia, mas através de derivações da versão de 1882 de Marius Petipa, que tem músicas novas e nenhuma proposta de reconstrução da primeira versão. Mesmo a versão de 1882 também acaba ficando de lado, recebendo uma primeira reconstrução apenas em 1904, feita a partir de algumas anotações sobre as criações de Petipa, que, de mais importante, tinha no elenco as futuras grandes estrelas do Ballets Russes de Diaghilev.

Quando Pierre Lacotte se propõe a refazer essa obra para o Opéra em 2001, é a partir de um conjunto misto e heterogêneo de materiais aos quais ele teve acesso que o novo Paquita foi construído, em diálogo constante entre construção e reconstrução. Mantendo a estrutura francesa, com a inclusão do Pas de Trois russo e alguns dos solos que ficaram reconhecidos no século XX, e, sobretudo, tentando refazer a pantomima romântica da criação original do ballet — ou pelo menos uma aplicação da técnica romântica para os bailarinos atuais — aquilo a que o público tem acesso atualmente não é uma remontagem histórica, ao pé da letra, mas uma remontagem reflexiva daquilo que — para o coreógrafo — é Paquita, e, portanto, uma versão nova e autoral.

Originalmente chamado Empire, são diversos os elementos que contribuíram para a fama do ballet na França, desde sua estréia. Um dos pontos principais foi a interpretação de Carlotta Grisi, já reconhecida e quase idolatrada por público e crítica pela criação da personagem Giselle, na coreografia homônima de 1841. Já em sua criação, Paquita é aclamado pela sua mistura de novidade e tradição, dosando o pitoresco popular do momento com a técnica aperfeiçoada da interpretação pantomímica, sendo comentada, desde então, como um possível excesso de melodrama.

Esses choques apontam para dificuldades da categorização da coreografia e, sobretudo, de sua reconstrução. Em questões de técnica, a movimentação principal era organizada pelo uso do Allegro. O Allegro, destoando do lirismo romântico presente em obras como Giselle e La Sylphide, propõe uma vivacidade quase única para a personagem principal da coreografia. A despopularização do Allegro ao longo do século XX e suas novas estratégias de elaboração pelas formas mais contemporâneas de dança podem ser, em parte, aquilo que leva bailarinas e públicos, nesse momento, a se sentirem ainda atraídos por essa obra tão peculiar.

No entanto, nada peculiar, e completamente integrada ao gosto do público daquele momento é a temática desenvolvida. As cenas, colocadas numa Espanha afrancesada abriam um espaço para novas formas de decoração, cenários e figurino — em suma, novas formas de exibir as estrelas do Opéra. Não que a referência seja completamente única: a Espanha e suas influências rítmicas, coreográficas, literárias e visuais estão calcadas no repertório do ballet francês desde o final do século XVII, mas o que se vê aqui é uma nova tendência de mulheres mais carnais, em oposição às criaturas sobrenaturais que dominam a cena inicial do romantismo.

O que Paquita tem de exótico contando a seu favor para sua aceitação pelo público, o ballet também tem de incongruências. Desde um libreto considerado um pouco difícil para o entendimento, talvez mal desenvolvido, até sua realização problemática, que forçam lembrar, segundo o famoso crítico da época, Théophile Gaultier — numa tentativa não tão bem sucedida de defender a obra — que “o público sabe que não deve exigir de um ballet um bom senso rigoroso, e uma lógica bem elaborada”. Estamos aqui numa lógica mercadológica de criação de coreografias como entretenimento, e de temporadas de dança como eventos que eram tão — ou até mais — sociais quanto artísticos: uma época em que estar na Opéra de Paris seis noites por semana era tão comum quanto estar à frente da televisão é comum hoje em dia.

Muito da produção do período vem, então, mais de uma necessidade de criação e produção para um mercado específico do que de um grande impulso artístico e estético. Essa mesma lógica acompanha Paquita em sua transição pela Rússia e seu retorno à Paris no século XX, e ainda aparece insistente na discussão da Paquita atual de Lacotte. Enquanto o trabalho de arqueologia musical de David Coleman para a reconstrução da trilha sonora, considerando tanto a versão original de Deldevez e as alterações e arranjos de Minkus (responsável pela música da versão russa do ballet), conta com o apoio das partituras, anotações e observações dos músicos sobre suas propostas e interpretações, onde seria possível buscar, atualmente, a dança de Paquita, espalhada no tempo?

Existe uma certa quantidade de anotações sobre a dança desse ballet, mas anotações não dão conta completamente da movimentação. Há uma quantidade extraordinária de memória corporal de intérpretes diversos para versões e papéis diversos da obra, sendo transmitida e submetida aos efeitos naturais da memória e do tempo. Há um enredo razoavelmente fraco, de pouca profundidade, e que demanda muita pantomima para ser transmitido, dificultando intensamente a sua compreensão atual. E ainda assim, há um interesse nessa obra —  tanto por parte do público como por parte da direção do Opéra. Ou, pelo menos, da direção anterior da companhia. Comissionado durante a direção de Brigite Lefèvre e colocado por ela nessa que foi a última temporada que programou para o Opéra, atualmente já sob nova direção, Paquita representa um dos grandes propósitos observáveis pelos diversos programas que a antiga diretora construiu ao longo de seus mais de vinte anos comandando a companhia: a preservação da memória do Opéra.

Porém, aqui se instauram grandes debates sobre o que é possível preservar desse ballet. Mais que isso, retomam-se as questões sobre o plano artístico da gestão da companhia, que mistura esse tipo de “reconstrução” de Paquita, que leva em conta a versão russa da obra, com coreografias como Le Palais de Cristal de George Balanchine — Le Palais de Cristal é uma coreografia originalmente criada para o Opéra e que, por ser bem mais recente, tem mais formas de registro e acesso da versão originalmente feita em Paris, versão essa que a companhia continua a dançar, apesar de o próprio coreógrafo ter modificado drasticamente a obra e mesmo seu título ao longo da vida. Esse caráter misto de Paquita, enfim, chama atenção ao caráter misto da gestão da companhia como um todo, que, já historicamente, tem um repertório de impasses entre a direção artística e os coreógrafos que são convidados para os trabalhos.

Como um todo, essa nova Paquita tem interesse. O que ela apresenta de mais inteligente é a sua relação com o passado: temos uma nova criação, assinada por um coreógrafo atual; informada pelo passado e pela história da obra, mas que não tenta, em nenhum momento, muito sabiamente, se oferecer como uma janela para o repertório do romântico. É a reflexão que Lacotte, através de muita pesquisa, pode construir sobre o passado, mas, como reflexão sua, é uma reflexão do nosso século. Quanto a esse aspecto, não há problemas. Os problemas que aparecem são oriundos muito mais de algumas propostas do que de suas realizações. Sobretudo, permanece um questionamento que chega forte no público, que lê avidamente o programa da obra para tentar entender aquilo a que assistiu: o que isso quer dizer?

Porque mesmo considerando que a pantomima foi um fenômeno interessante dos séculos XVIII e XIX ela foi desaparecendo da dança e, sobretudo, da compreensão do público em geral. E, se ainda existe um fascínio na recriação do repertório clássico como obra de museu, há que se interrogar sobre as possibilidades de comunicação dessas formas, e os interesses artísticos, estéticos e culturais de sua produção, para que não estejamos permanentemente inscritos em lógicas de produção artística que ficaram estabelecidas séculos atrás e que têm pouca ligação com a dança e o público de agora, mesmo que sejam feitas através de bons trabalhos e de boas pesquisas.

Paquita