Le Palais de Cristal | Ballet de l’Opéra de Paris
O Palácio de Cristal de George Balanchine, retomado recentemente numa nova produção do Ballet da Ópera de Paris, foi originalmente criado em 1947 durante uma das temporadas do coreógrafo como professor convidado da companhia. A obra seria bastante alterada por ele mesmo com o passar do tempo, sendo eventualmente transformada na mais conhecida (e mais dançada) Symphony in C, do New York City Ballet.
Em 2014, ao decidir apresentar uma nova produção da versão original, e não da última versão da obra, o Ballet da Ópera traz à tona uma discussão há muito tempo cara à companhia, profundamente relevante para o momento que a mesma vive, de transição entre a direção de Brigitte Lefèvre (que, iniciada em 1995, chega ao fim em agosto desse ano, com o final da temporada 2013/2014) e a nova direção, sob o comando de Benjamin Millepied.
A direção de Lefèvre foi questionada desde muito cedo sobre a quantidade de remontagens que figuram em suas temporadas, elemento que ela própria diversas vezes articulou como parte da característica da companhia – e preservação de sua história e de suas obras. Nesse caso em especial, cria-se uma exclusividade: ainda que outras companhias dancem a Symphony in C, só o Ballet da Ópera de Paris dança Le Palais de Cristal. Surge então uma discutível responsabilidade histórica, quase museológica, de cuidado e manutenção dessa obra.
Discutível porque, sobretudo, ainda que o discurso da manutenção seja intenso, a obra foi apresentada nessa temporada numa nova produção, que mantém os cenários neutros tão caros a Balanchine, mas investe na recriação dos pesados figurinos coloridos, nesse caso com o convite e adição de outro grande nome para o programa do espetáculo, com as criações que Christian Lacroix propôs para a produção. Mais ainda, mesmo a obra tendo sido criada na Ópera e para a Ópera, essa produção foi supervisionada e permitida pela Balanchine Trust, a responsável pela verificação da característica do estilo Balanchine em todas as produções de criações do coreógrafo.
Surge aqui um impasse que tem sido refletido há muito na história dessa companhia e que marca uma questão chave da manutenção de obras das artes vivas: ao propor a importância de manter uma obra em repertório, preservá-la como objeto histórico relevante dessa forma artística, o quanto de intervenção pode ser colocado sobre ela antes que ela se desfigure?
O próprio Balanchine, ao falar de remontagens do repertório clássico, advogava que as obras deveriam ser recriadas, segundo a realidade de seu tempo, garantindo, não a preservação intocada de um original, mas o seu objetivo e propósito comunicativo. Sob essa luz, para uma obra continuar comunicando, ela pode precisar de mudanças.
Seria improdutivo discutir nessa nova produção o quanto das mudanças era necessário e o quanto era desejado. Quanto eram novas propostas que foram coladas ao conjunto antigo e o quanto eram características intocáveis da obra. Porém, essa noção complexa e idealizada da existência de elementos que não podem ser alterados – e mais ainda, da possibilidade de se remontar uma obra mantendo algo de sua versão anterior intocado – está no centro dos trabalhos de Balanchine. Toda a instituição e o estabelecimento dessa ideia da característica autoral de seu trabalho, permanentemente sob esse esforço de manutenção através das instâncias que sancionam as produções de suas obras, são ponto fundamental da discussão de Balanchine. E também ponto fundamental da discussão do Balé da Ópera.
Aqui, O Palácio de Cristal aparece como ponto de convergência entre Balanchine e a Opéra. Não só pelo dado simples do trabalho do criador com a companhia, mas pelas questões subjacentes aos propósitos criadores e estilísticos dele, e às propostas de articulação entre inovação e manutenção da companhia. Discutir o lugar dessa coreografia no repertório dessa companhia, numa temporada neste ano, sob esta direção que está findando, é, de muitas formas, discutir a nossa relação contemporânea com a manutenção de obras coreográficas.
De um lado, existe um desejo, quase fetichístico, de preservação: estamos representando, 60 e poucos anos depois, esta obra, para um público que agora poderá ter contato de verdade com ela (de verdade no sentido espetacular, para além dos possíveis registros e referências a ela deixados). E sob esse aspecto, uma crítica à obra se apresentaria a partir de um estudo quase arqueológico do ballet. Seria imprescindível discutir a relevância histórica da obra, sua ligação direta com a construção do que Balanchine propunha ser o Estilo Americano e seu momento de criação: estamos em 1947 às vésperas do batizado do New York City Ballet, companhia que ficou para a história como o legado de Balanchine, e que apresentaria em sua primeira temporada sob este nome a nova versão dessa obra. Tratamos aqui, então, de um Balanchine às vésperas desse grande marco de sua carreira – o sucesso, enfim, de uma companhia sua estadunidense.
Montar neste momento Sinfonia em C seria montar a obra tal qual ela chegara ao NYCB, com toda a importância que pode ai ser atribuída. Montar O Palácio de Cristal parece uma forma do Ballet da Ópera lembrar desse momento anterior, Balanchine antes do NYCB, fixando a obra no momento de sua estreia, deixando de lado as muitas alterações pelas quais passou ao longo do tempo, tanto em Paris como em Nova Iorque.
O mais curioso dessa seleção é que sua proposta, totalmente ligada ao perfil da Ópera de Paris – que sempre preteriu as versões da casa a outras versões, mesmo que reformadas, das obras – revela o preterir Paris a Nova Iorque. Essa oposição dos locais e de suas companhias, aqui discutida em Balanchine, é bastante pertinente ao momento do Ballet da Ópera, cuja troca de diretores está articulando também uma troca de linhagens: pela primeira vez a companhia vai ser dirigida por um bailarino formado por outra escola/companhia. O caso, que tem recebido bastante atenção da mídia e não tão poucas críticas (no sentido mais negativo da palavra), curiosamente é precisamente que o novo diretor foi formado pelo NYCB. Esse programa mescla passado e futuro não só pelas múltiplas associações do Palácio de Cristal, mas também pela segunda obra que é apresentada com ele na noite, precisamente uma criação do futuro diretor da companhia, Benjamin Millepied, Daphnis e Chloé.
Assim, enquanto de um lado víamos o desejo fetichístico da manutenção, por outro lado é perceptível que ele esteve o tempo todo acompanhado pelo objetivo – quase programático – de modernização. A questão da modernização da Ópera pode ser apontada historicamente como a grande tensão que se coloca junto da proposta de manutenção: conservar ou modernizar foram constantemente o impasse e o impulso criativo, assim como uma das questões mais relevantes para as discussões e avaliações críticas de sua produção.
Esse impasse se mostra constantemente também nas obras de Balanchine, que ao longo de sua carreira trabalhou entre o estilo clássico e sua modernização. Nesse sentido, O Palácio de Cristal poderia ser apontado emblematicamente no repertório de Balanchine, indicando simultaneamente passado e futuro: nos termos do clássico – como antigo – e de sua modernização, mas também dentro de suas produções, ao passo em que se associa a algumas características de seus trabalhos mais iniciais, anteriores a ida para os EUA ao mesmo tempo em que se relaciona a trabalhos de sua maturidade.
Nesse sentido, a escolha de Le Palais de Cristal para um dos últimos programas da última temporada dirigida por Brigitte Lefèvre parece um acerto não puramente estético – não se trata ai de uma questão do quanto o estilo de Balanchine pode ser referencial em sua carreira ou dentro dessa companhia – mas sim um acerto histórico – historiográfico – que reflete o estilo do Ballet da Ópera de Paris, bem como o estilo da direção de Lefèvre, focando em apresentar novos conteúdos, mostrar onde a dança pode ir, mas mantendo a apresentação de grandes exemplos do repertório, que mostram – desde há muito tempo, e continuam mostrando até hoje – os caminhos por onde a dança já passou.