Críticas

L’Anatomie de la Sensation (pour Francis Bacon) | Ballet de l’Opéra de Paris

A temporada 2014/2015 do Ballet de l’Opéra de Paris se encerrou com uma obra de 2011 de Wayne McGregor: L’Anatomie de la Sensation (pour Francis Bacon).

L’Anatomie de la Sensation (pour Francis Bacon) [A Anatomia da Sensação (para Francis Bacon)] é a segunda coreografia do inglês Wayne McGregor para o Ballet da Ópera de Paris, criado em 2011 e reprisado como encerramento da temporada 2014/2015 da companhia. Inspirado por pinturas de Francis Bacon (a quem o coreógrafo dedica a obra desde seu título), McGregor propõe ao público explorações sinestésicas do movimento, num diálogo entre a fisicalidade e a emoção.

A fisicalidade é uma característica fundamental do trabalho do coreógrafo, observável na sua pesquisa contínua desde 1992 com a sua companhia Wayne McGregor | Random Dance, e também nas diversas obras que fez enquanto artista convidado de outros grupos, e Coreógrafo Residente do Royal Ballet de Londres (cargo que mantém desde 2006 com a distinção de ser o primeiro coreógrafo contemporâneo no posto, além de ser o primeiro ocupante do cargo em 16 anos, desde Frederick Ashton). A exploração corporal de McGregor parte do gesto e da estrutura corporal, buscando novas formas de movimentação, assim como novas formas de associação entre os corpos que dançam.

Seus inovadores equilíbrios, centros compartilhados, segmentações corporais, se associam a um outro caráter inovador do trabalho de McGregor: o uso da tecnologia — que, nessa obra, trata de tecnologias mais primárias do que os muitos computadores, máquinas e projeções que são habituais em suas obras: a construçãr arquitetônica da cena.

Comissionada pela então diretora do Opéra, Brigite Lefèvre, para ser montada no palco da Opéra Bastille — a segunda casa da Opéra de Paris, mais moderna e com mais recursos técnicos — a obra conta com o apoio fundamental do cenógrafo inglês John Pawson, também responsável pela cenografia da premiada coreografia Chroma, de 2006, de McGregor para o Royal Ballet de Londres. Para A Anatomia da Sensação, Pawson empresta de Bacon uma noção estrutural presente em diversas das obras que o coreógrafo decidiu usar como inspiração para sua composição: a estrutura do tríptico — a apresentação de um tema em três segmentos, costumeiramente dentro de uma linearidade ou programa associativo.

Aqui, Pawson elabora duas enormes paredes brancas móveis, que, angulares, giram e se ajustam em cena, recortando o espaço, mas, sobretudo, a luz de Lucy Carter (já antiga parceira de McGregor, desde a fundação da Random Dance). As diversas possibilidades combinatórias dos posicionamentos das paredes, suas frestas, os espaços que ocupam e aqueles que deixam vazios, criam, quando associadas à iluminação, lugares variados no palco. Passa a ser possível para o coreógrafo construir cenas paralelas, mas que passam a impressão de estarem em locais completamente distintos, como se fossem duas telas diferentes colocadas próximas. Ao mesmo tempo, existe a possibilidade de trânsito — possibilidade que o coreógrafo explora intensamente, fazendo seus bailarinos passarem de um a outro espaço.

Ainda que a maior parte dos quadros de Bacon partam de elementos reconhecíveis, compreensíveis, o trabalho do pintor é sobretudo com a distorção dessa representação. Seus humanos estão retorcidos, seus objetos se transformam, seus espaços se misturam. O que fica claro da observação do coreógrafo dos trabalhos do pintor é o sentimento de um convite a novas percepções: como é possível entender tal e tal informação de novas formas.

Mais do que simplesmente entender aquilo por si só, a reflexão do coreógrafo, presente ao longo de sua careira e de sua pesquisa acadêmica em ciência cognitiva, trata da noção de cognição distributiva, a possibilidade de que um grupo de pessoas possa compartilhar e desenvolver uma linha de pensamento comum. Aqui, vemos o ponto claro de seu trabalho corporal: partir do conflito para encaminhar formas de resolução e coexistência.

Sua observação do processo criativo como algo que parte de um ponto mas que continua sempre em frente, sem voltar ao início — portanto sem a criação de ciclos — é algo que o coreógrafo observou também nas pinturas que o inspiram para A Anatomia da Sensação. Quando ele faz referência às formas como Bacon foge das regras artísticas criando sua própria sintaxe, podemos entrever as estruturas de sua obra, que tenta escapar de possíveis caminhos prontos, mantendo o cenário em constante alteração, a luz em constante alteração, os conjuntos em constante alteração, e suspendendo as noções de completude que costumamos esperar de obras de dança narrativas (apesar de haver uma divisão possível do espetáculo em cenas — pautadas pelos nove movimentos da trilha sonora — as cenas não seguem lógicas narrativas, não estabelecem enredo, raramente criam desfechos).

Suspendendo o espectador na sensação do desconhecido, McGregor refaz o processo de sua apreciação das obras de Bacon como potencializadoras e provocadoras. Elas te oferecem alguns indícios, mas não são rotas completas, não há uma linha de chegada ao fim do caminho; há a apresentação de um conteúdo que pede ao público que o leve adiante.

Existe uma dramaturgia, mas é uma dramaturgia de conjuntos. Do vazio, do múltiplo da confusão. Assim como o coreógrafo propõe que as obras de Bacon não sejam exatamente representativas, sejam mais indiciais (apresentando rastros de sensações), o mesmo projeto foi desenvolvido com os bailarinos, que foram parte fundamental da pesquisa de criação da A Anatomia da Sensação. Tratando do processo criativo, McGregor exemplifica com o trabalho com uma figura que, num quadro de Bacon, grita. Ele propõe uma interpretação sinestésica: devemos ouvir o grito, através da imagem, mas não por formas de associação direta, não porque exista uma boca aberta, como que a gritar; e sim, pelas técnicas de apresentação e tratamento da imagem do pintor. Para transformar isso em coreografia, o questionamento que se propõe aos bailarinos é similar: como dançar o som do grito?

Assim, não há mímica, não há gesto representativo, há a criação de corporeidades e situações cênicas que oferecem um ou outro caminho para possíveis ideias. Cabe ao público aceitar a proposta e tomar esses lugares como pontos de partida, para chegar a algum entendimento — pessoal — desse estudo pouco pictórico, bastante analítico, e que quase disseca a anatomia das sensações.

McGregor