Críticas

L’Histoire de Manon | Ballet de l’Opéra de Paris

Aos 42 anos e meio, Aurélie Dupont, maior das estrelas atuais do Ballet de L’Opéra é forçada a se aposentar. A nova postagem do Da Quarta Parede discute a aposentadoria compulsória dos bailarinos da companhia nacional francesa, o futuro de Dupont e a obra que ela escolheu para sua despedida dos palcos: Manon, de Kenneth MacMillan.

Para sua despedida dos palcos da Opéra de Paris, Aurélie Dupont escolheu o ballet L’Histoire de Manon, criado em 1974 por Kenneth MacMillan para o Royal Ballet de Londres, e presente no repertório da companhia nacional francesa desde 1990. Aqui, somam-se as tradições da aposentadoria compulsória dos bailarinos da companhia — aos 42 anos e meio — e a possibilidade de escolha pela estrela que se aposenta da obra que terá sua última reverência junto do grupo.

A regra da aposentadoria compulsória sempre existiu na companhia. Por muito tempo, porém, as idades de aposentadoria eram diferentes: até há pouco mais de 10 anos, as mulheres se aposentavam aos 40 anos e os homens aos 45. Se por um lado a regra parece injusta, por não considerar as condições e capacidades de cada bailarino individualmente, por outro ela garante uma continuidade da promoção de bailarinos dentro da companhia.

Considerando a possibilidade de entrar na École do Ballet de l’Opéra a partir dos 8 anos de idade, a admissão na companhia entre 16 e 20 anos, e a promoção ao posto maior de Étoile que ocorre — em média — por volta dos 25 anos, estamos tratando de uma carreira que pode passar de três décadas dedicadas a essa companhia, quase duas delas como Étoile, dançando os papéis principais das coreografias do Opéra. Por outro lado, a escola da companhia forma anualmente dezenas de bailarinos (dentre os mais de uma centena que abriga), e estes precisam de espaço de trabalho, idealmente dentro da companhia para a qual se preparam, e que já tem um elenco de mais de 150 bailarinos, divididos dentro das seis ordens da companhia — Estagiários, Corpo de Baile, Corifeus, Sujeitos, Primeiros-Bailarinos, Estrelas — dentre as quais as Estrelas contam com menos de 20 indivíduos.

No todo, são currículos e trajetórias consideráveis, mas que têm a despedida dos palcos  da Opéra estabelecida num limite ao qual eles podem unicamente almejar chegar: os 42 anos e meio. Depois disso, alguns dos bailarinos vão dançar em outras companhias, outros podem ser convidados a continuar trabalhando no Ballet de l’Opéra, dentro de outras funções, como professores, ensaidores, assistentes. É o caso de Aurélie Dupont, única estrela que se aposentou na recente temporada 2014/2015 da companhia, e que assume, a partir de setembro próximo, a convite do atual Diretor de Dança, Benjamin Millepied, a posição de Maître de Ballet, na qual será responsável por trabalhar com bailarinos de destaque que estejam construindo papéis para as obras do grupo. Nessa posição, ela vai substituir Clotilde Vayer, que será promovida a Maître de Ballet Associada à Direção, ocupando o lugar de Laurent Hilaire — esse, simplesmente deixado de lado pela companhia, numa reviravolta teatral: originalmente, ele estava sendo preparado pela antiga diretora, Brigite Lefèvre, para assumir o seu lugar, que foi dado a Benjamin Millepied, atual diretor.

Dentro dessa linha de mudanças, Aurélie Dupont dá continuidade à tradição da qual já fazia parte — porém do outro lado do espectro — tendo ela mesma também trabalhado sob supervisão de antigas estrelas da companhia na composição de diversas de suas personagens memoráveis. Dentre essas personagens figura a protagonista de A Dama das Camélias de John Neumeier (2006), que era, curiosamente, sua escolha original para obra de despedida. Porém, como essa foi a obra que Agnès Letestu escolheu para sua despedida em 2013, Dupont escolheu uma das personagens que mais se encaixam em seu gosto trágico: Manon Lescaut.

O drama de Manon foi apresentado pela primeira vez no texto As Aventuras do Cavaleiro des Grieux e de Manon Lescaut, de 1731, Tomo VII do livro do abade Antoine-François Prévost intitulado Memórias e Aventuras de um Homem de Qualidade que se Retirou do Mundo. Adaptado diversas vezes em peças, óperas e filmes, o tema conhece duas versões coreográficas principais, ambas dos anos 1970: a de Kenneth MacMillan e a de Peter van Dyk. Em comum, essas versões tem apenas a época e o tema. Enquanto Van Dyk coreografa sobre músicas de Mozart, MacMillan usa obras de Jules Massenet, compositor francês de muitas trilhas sonoras para cena, incluindo uma Ópera chamada Manon.

Porém, a trilha sonora que Leighton Lucas organiza para a obra de MacMillan parte dos trabalhos de Massenet, mas usando diversos trechos de composições líricas e sinfônicas do músico, e nenhuma passagem da ópera Manon do compositor. A existência de uma ópera de Massenet e de um ballet com música de Massenet para o mesmo tema responde pelo fato de no Reino Unido e Estados Unidos o ballet de MacMillan se chamar simplesmente Manon, e na França, onde já existia o registro da ópera de Massenet com esse título, para evitar confusões a obra foi chamada de A História de Manon.

A importância história do ballet de MacMillan é grande. Sua criação marca um momento de interesse da direção do Royal Ballet de Londres de abrir espaço para as jovens estrelas da companhia, e com essa perspectiva o coreógrafo se negou a dar o papel principal para uma artista convidada — aqui já estabelecendo mais um laço com o uso dessa obra para a despedida de Aurélie Dupont, que deixa o seu lugar para as estrelas mais jovens do Opéra.

A coreografia foi transmitida pelo próprio MacMillan para o Opéra em 1990, a convite do então Diretor de Dança Patrick Dupont, que queria incluir um trabalho do coreógrafo inglês no repertório da companhia. A escolha de Manon faz parte da busca constante do Opéra pela manutenção de sua identidade histórica e francesa: o trabalho escolhido é precisamente um trabalho que tem música francesa, história inspirada em um romance francês, e que se passa na França. Essa caracterização responde em parte pela percepção de críticos e de públicos da época de que, ainda que a versão francesa seja uma remontagem quase exata da versão original inglesa, ela tenha adquirido rapidamente uma característica particular e uma identidade e sensibilidade culturais próprias.

A história também é um interessante reflexo da moral francesa ao final do governo de Luis XIV. Retrata jogatinas, libertinagem, desejos de glória, roubos e traições, numa pintura da decadência de um período que beira o deboche do “dilúvio” (da frase, atribuída à  amante oficial de Luis XV, a Marquesa de Pompadour, “depois de mim, o dilúvio”). O enredo apresenta Manon, filha de 16 anos de um militar, sendo escoltada por seu irmão a caminho de um convento. Em um albergue, eles cruzam com Monsieur de G.M., um cavalheiro de idade, que se interessa por Manon, e por cuja fortuna se interessa o irmão da moça, se propondo a ajudar G.M. a estabelecer um relacionamento com sua irmã. Quando Manon cruza com o jovem Des Grieux, os dois se apaixonam e fogem para Paris, com o dinheiro que G.M. havia dado a Manon.

O dinheiro dura pouco em Paris, e Des Grieux escreve a seu pai pedindo ajuda. Vemos uma Manon apaixonada por ele, mas encantada com a vida fácil. Manon, sozinha na casa do casal, é surpreendida por seu irmão, acompanhado pelo Monsieur G.M., e ela, pensando na fortuna de G.M. decide por seduzi-lo e deixar Des Grieux. Quando Des Grieux volta pra casa, ele encontra apenas Lescaut, o irmão de Manon, que tenta o convencer de que a ligação de Manon com G.M. só pode ser financeiramente proveitosa para eles todos.

No segundo ato, vemos o Hotel Transylvania, famoso endereço parisiense que, nas noites, se transformava em cassino. Lá, Manon e G.M. vão para aproveitar a noite elegante da cidade. Quando Des Grieux chega, ele tenta convencer Manon a voltar pra ele, mas ela, seduzida pela vida luxuosa com G.M. sugere que Des Grieux tente a sorte numa partida de cartas, durante a qual ele é surpreendido trapaceando, desencadeando uma briga de espadas em que ele fere G.M. no braço, na sequência fugindo com Manon. Manon está decidida a fugir, mas levando os diamantes de G.M. lhe havia dado, e nesse caminho eles são surpreendidos pela polícia, com Lescaut preso, e à procura de Manon, acusada por G.M. de prostituição. Durante a briga da captura dos dois, Lescaut é mortalmente ferido.

O terceiro ato se passa em Nova Orleans, colônia penal nos Estados Unidos, onde chegam, presos, Des Grieux e Manon. A menina desperta o interesse de um carcereiro, que decide possuí-la mesmo que à força, mas que é morto por Des Grieux em defesa de Manon. Manon e Des Grieux conseguem fugir, e erram perdidos e exaustos. Em um delírio, ela revê as imagens de sua vida e compreende que já não tem mais chances de realizar seus sonhos, caindo nos braços de Des Grieux e morrendo.

A história de Prévost teve um sucesso enorme desde sua publicação. Elogios a ela são constantes por autores posteriores. Novela imoral e verdadeira, ela dá início a uma tradição que vai permitir a criação de personagens como Madame Bovary, e A Dama das Camélias: mulheres que não pedem desculpas por seguirem seus instintos, que não têm medo de quebrarem regras e não atenderem ao que seja esperado delas. É a característica de Manon, sua mistura única entre o imoral e o sonhador, que mostra a força de uma personagem que carrega toda a história, e todo seu futuro, nas costas e nas mãos.

Importa pouco que seu fim seja trágico, porque Manon garante que, antes do fim, ela tenha feito aquilo que quis. Quando ela cai morta no palco e a cortina se fecha sobre Des Grieux chorando, vemos uma Manon realizada. Vencida, porque seus planos não deram certo, mas não derrotada, porque seus planos foram realmente seus, e a cada vez que um homem tentou determinar sua vida, Manon escapou dele para fazer aquilo que quis.

Talvez por isso o poeta Guy de Maupassant diga que ela é mais verdadeiramente mulher que todas as outras mulheres. Talvez por isso Aurélie Dupont tenha escolhido Manon para sua despedida dos palcos da Ópera. O destino tem limites: sem mais chances de agir, Manon morre. Os limites da vida de uma Étoile do Opéra são outros: aos 42 anos e meio — e dançando tão bem quanto nunca — Aurélie é aposentada. Sobre Manon, se debruçam as lágrimas de Des Grieux, perdido sem a sua amada. Sobre Dupont, cai uma chuva de estrelas, com restante do palco vazio para a reverência da maior das estrelas atuais do Opéra, enquanto ela se despede pela última vez do palco do Palais Garnier.

 

Manon