Críticas

La Fille Mal Gardée | Ballet de L’Opéra de Paris

La Fille Mal Gardée é uma das coreografias mais tradicionais do ballet clássico. Analisando sua criação em 1789 e seu percurso para a versão atual de Frederick Ashton, recentemente em cartaz na Opéra de Paris, o Da Quarta Parede faz um comentário Historiográfico, sobre essa obra emblemática da Escola Clássica Francesa e do Ballet de Ação, e sobre as possibilidades de se refazer o repertório.

A história de La Fille Mal Gardée, ballet originalmente criado em 1789 para o Grand Théâtre de Bordeaux por Jean Dauberval é simples. Temos dois jovens camponeses  — Lise e Colas — apaixonados, mas a mãe da garota está decidida a casar Lise com o filho de um fazendeiro rico, se dedicando a vigiar a filha para que ela não se aproxime demais de Colas. A coreografia é uma das mais tradicionais do Repertório Clássico, tendo sida recontada e refeita inúmeras vezes, por diversas companhias e coreógrafos.

O Ballet de l’Opéra de Paris já teve em seu repertório cinco versões distintas dessa coreografia, as quatro primeiras — que já não são dançadas — são datadas de 1803, por Eugène Hus — que foi bailarino da versão de Dauberval; 1828, por Jean Pierre Aumer; 1980, por Heinz Spoerli; e 1987, por Joseph Lazzini. A atual versão dançada pelo Opéra, e a última a entrar no repertório da companhia foi criada originalmente para o Royal Ballet de Londres, por Frederick Ashton em 1960, sendo remontada pelo Opéra pela primeira vez em 2007, e apresentada por volta de 60 vezes desde então.

Tida como expoente da Escola Clássica e do Ballet Pantomima, La Fille é a primeira realização completa das propostas iniciadas pelos reformadores da dança — como Cahusac e Noverre —, que propunham afastar essa forma artística das máscaras e da afetação do Ballets à Entrée dos séculos XVII e XVIII. Ainda mais importante, é a única história e partitura que nos chega dessa época fundamental para a formação da dança ocidental.

Porém, é imprescindível considerar as condições em que essa coreografia chega ao público hoje em dia. Da versão original, existe uma quantidade de anotações sobre as cenas de pantomima, e existem cópias da primeira trilha sonora, composta por canções populares da França daquela época. Porém, a única tentativa contemporânea de reconstrução, ou de pesquisa histórica em cima dos originais, é uma versão de 1993 do Ballet du Rhin, apresentada sob o primeiro título que a obra recebeu, O Ballet da Palha. E mesmo essa versão de reconstrução histórica teve toda a coreografia criada segundo o estilo do período, mas não segundo a coreografia original, pois nada da coreografia da primeira versão da obra ainda existe.

Também a música original não costuma ser usada: as muitas versões de La Fille que existiram e ainda existem se baseiam em outras trilhas sonoras, como a composta por Catterino Cavos na versão russa de Charles Didelot para o Ballet Imperial do Teatro de São Petesburgo de 1808, a composta por Luis Joseph Ferdinan Hérold na versão de 1828 de Jean Pierre Aumer para o Opéra de Paris, ou ainda a de Peter Ludwig Hertel na versão de Paul Taglioni (tio da famosa bailarina Marie Taglioni) coreografada em Berlin em 1864. A composição de Hertel serve de trilha para a maior parte das versões, dentre elas a mais famosa é a de Marius Petipa e Lev Ivanov feita em 1885 para o Ballet do Teatro Imperial de São Petesburgo, mas que usa não apenas Hertel, incluindo também trechos da versão de Hérold, além de novas cenas compostas por Minkus.

Essa versão de Petipa foi anotada em sistema de notação Stepanov por Nicholas Sergeyev, e sai da Rússia junto do maestro em 1917, chegando com ele na Inglaterra, onde vai ser remontada para o Royal Ballet de Londres junto de diversos outros clássicos de Petipa. Porém, a lista de versões não se encerra ai. Muitos outros coreógrafos fizeram suas próprias La Fille, dentre outros, Alexander Gorsky (1903), Léonide Lavrovsky (1937), Bronislava Nijinska (1940), Dimitri Romanoff (1949), Alicia Alonso (1964), e Claude Bessy (1985).

Com essa perspectiva em mente, surge um distanciamento que nos impede de pensar em uma continuidade autoral da coreografia de La Fille Mal Gardée. Tampouco há uma continuidade da música, e nem mesmo do enredo (as versões da coreografia tem combinações completamente variáveis entre por volta de 30 e 60 cenas). Aquilo que foi transmitido — e bem transmitido — através do tempo é o argumento original de Dauberval e sua ideia, praticamente inédita, de colocar em cena os camponeses franceses. É fundamental pensar que a dança naquele momento ainda se prendia sobretudo às representações de deuses, de heróis mitológicos, de grandes histórias e tragédias morais, apresentadas com canto e recitativo para garantirem o andamento das histórias retratadas. É a ideia de colocar em cena uma pastoral cômica que responde pela originalidade desse ballet, sua intensa e positiva recepção pelo público, e sua continuidade no tempo.

Pensar no ano da criação de La Fille, 1789, é pensar na preparação da Revolução Francesa, e, inocentemente, podem ser feitas associações posicionando Dauberval como um defensor dos ideais revolucionários — por colocar em cena o povo francês. Porém, essa é uma associação perigosa. Dauberval era um dos coreógrafos preferidos do público da época, formado sobretudo pela aristocracia francesa, com a qual ele mesmo se identificava, sendo famoso por preferir o público dos Camarotes ao público da Orquestra.

Mesmo ao levar em conta essa escolha pelos sujeitos simples na história, não dá pra deixar de notar que o retrato que ele faz desses camponeses em cena não tem muito da realidade daquele momento — estávamos, então, em meio a uma das maiores crises financeiras da França, que se encontrava assolada pela fome e pela miséria, e os camponeses de Dauberval vivem em constante alegria do contato com o campo e com o trabalho braçal, retratado como leve e feliz nas cenas do ballet. Mais ainda, no ano seguinte à criação do ballet, insatisfeito com a tomada popular da França pelo Terceiro Estado, Dauberval se exila na Inglaterra — onde ele mesmo remonta  a sua primeira versão de La Fille para o Pantheon Theatre de Londres em 1791 — só retornando à França em 1796, onde ele morreria uma década depois.

Em todo esse histórico, os únicos traços de consideração social dessa obra não tratam da luta de classes do momento, mas sim da situação dos casamentos, que ainda eram costumeiramente arranjados pelas famílias dos jovens, sem que o amor ou as preferências individuais tivessem qualquer impacto sobre a decisão econômica do contrato de casamento. Assim, com essa elaboração do tema, Dauberval consegue tocar num ponto que aflige diversos estratos sociais, e colocando a ação centrada no campo, ele atende aos desejos de seu público aristocrático por cenas ambientadas no pitoresco, desconhecido e incomum.

Quando Frederick Ashton vai coreografar uma nova versão de La Fille Mal Gardée em 1960 para o Royal Ballet, quais são, então, as bases que ele escolhe? A música é uma adaptação reduzida da versão de 1828 de Ferdinand Hérold (mais de 20 sequências são eliminadas), orquestrada por John Lanchbery para se encaixar precisamente nas propostas coreográficas de Ashton. O enredo é construído pelo coreógrafo a partir de  duas referências principais: um programa de uma versão russa publicado em 1937, que ele reformula segundo suas próprias propostas; e, sobretudo, a partir das opiniões de Tamara Karsavina, que havia dançado a versão de Petipa/Ivanov no Mariinsky e que a reconta detalhadamente ao coreógrafo, que parte dessas bases mistas — além de referências a muitas outras versões — para criar seu próprio trabalho.

Da constante referência que várias companhias insistem em colocar em seus programas indicando que suas obras são “d’après Dauberval” (significando que a versão apresentada parte da versão de Dauberval), é difícil separar aquilo que é apenas marketing barato para vender a coreografia com uma ligação com o passado, e aquilo que é de fato conteúdo, reelaborado em cena. A continuidade que existe em La Fille, é uma continuidade dramatúrgica, uma linha (bastante geral) que interliga e relaciona as muitas versões de obra que foram e são apresentadas. Sim, essa linha foi lançada pela primeira vez por Dauberval, porém ela foi costurada por diversas outras mãos, com diversas intenções, numa rede — ou teia — de aproximações e afastamentos.

Essa teia chega ao público da versão de Ashton com destaque para vários elementos que, pode-se supor, foram propostos já por Dauberval. Ainda temos um ballet leve, que elimina todos os elementos do trágico, todos os traços de heroísmo, pra tratar de fatos cotidianos, de personagens que são nomeadas mas que não passam de figuras genéricas: o título já nos esclarece, não está em cena o drama de Lise e Colas, mas a história de uma garota, vigiada pela mãe e tentando fugir dessa supervisão para ficar com seu amado.

Se o enredo parece excessivamente simples, não é por acaso. Quando essa história foi proposta estávamos nos primeiros passos do Ballet Pantomima, e enredos simples são os mais práticos para o início da verificação da possibilidade de uma coreografia contar uma história, sobretudo sem canto e com relativa independência da música, como eram os objetivos do momento. E o fato de o enredo ser simples abre espaço para muitas outras formas de continuidade — não é à toa que essa foi uma das coreografias melhor aceitas pelo público de Ashton: diminuindo as intrigas, os detalhes de um enredo complexo, abre-se um espaço para a dança e a sua admiração enquanto qualidade de movimento.

Os movimentos em si provavelmente não guardam semelhança alguma com a coreografia de 1789 — como mencionado, a única coreografia que tenta refazer o estilo da primeira versão é a do ballet du Rhin, de 1993. Porém, essa semelhança com a primeira versão não é de fato uma obrigação para cada nova criação de La Fille, salvo os casos em que um ou outro coreógrafo decidam anunciar seus trabalhos como feitos a partir da coreografia de Dauberval — nesses casos, público e crítica podem se debruçar, esmiuçar e questionar as possibilidades e formas de contato que a companhia  estabeleceu com a obra de 1789 (e, salvo raras exceções, se decepcionar com a conclusão de que essas formas não existem). Porém, essa não é a situação de Ashton. Decidido a fazer sua própria obra, Ashton credita a Dauberval o argumento emprestado — referência justa e devida — mas não a coreografia, que ele Ashton assina inteiramente.

Cômico, leve e pitoresco, o La Fille Mal Gardée de Ashton não tem pretensões historiográficas: não há tentativa de reconstruir um tempo e espaço, uma versão específica do ballet. O que o coreógrafo parece nos apontar é uma potência que emana dessa história, desse enredo, e que aos seus olhos parece poder ainda comunicar — ou pelo menos assim lhe parecia em 1960 quando de sua criação, mas que, a julgar pela reação do público de 2015, não está desaparecida, tampouco enfraquecida: continua pulsante, a um instante se mostrando, e no seguinte escapando dos olhos do público, que vigia, mas não tão atentamente e mantendo um tom de brincadeira, a garota, a história, e o ballet.

La FIlle