La Bayadère | Ballet de l’Opéra National de Paris
A versão de 1992 de Nureyev para a Bayadère de Petipa foi a última das coreografias que ele criou, estreando três meses antes de sua morte, e contando com um orçamento enorme — tão grande quanto a história por trás desse tema, que remonta ao século XIII. Grande evento de fim de ano da temporada 2015/16 do Ballet de l’Opéra de Paris, La Bayadère é o foco de uma crítica e análise histórica do Da Quarta Parede.
O interesse pelas devadāsī, as servas dos deuses, aparece em relatos de viagens às Índias desde o século XIII. É com o nome derivado do português bailar que elas passam a ser referidas como Bayadères — as dançarinas do templo — e vão aparecendo nas artes da cena francesas a partir do século XVII, nos Ballets de Corte de Lully e Beauchamp, a partir de uma influência direta de um mito contado por um missionário holandês acerca do deus Shiva, descido à Terra para provar a fidelidade das suas bailarinas.
No período Romântico, já em 1830, dois anos antes da criação da coreografia La Sylphide, Philippo Taglioni coreografa uma Ópera-Ballet criada por Scribe e Auber a partir da inspiração de um poema publicado por Goethe em 1798, chamado O Deus e a Bayadère. O exotismo, interesse em culturas estrangeiras, continuava em alta na Europa, e marca turnês de dançarinas indianas em teatros de variedades, e a produção de diversas obras literárias e cênicas inspiradas por argumentos hindus. Em diversas dessas obras, a figura da Bayadère aparece como heroína romântica, uma mulher virtuosa, frequentemente vítima da luxúria e inveja dos Brâmanes dos templos indianos, e tentando alcançar um amor impossível.
Na Rússia, esse tema conquistou um espaço dedicado dentro da dança, quando em 1877, Marius Petipa coreografa um ballet em quatro atos e sete quadros, com música encomendada a Ludwig Minkus para o Grand Théâtre de Saint-Petesbourg, dando início às múltiplas versões e visões de La Bayadère: uma tradição do Ballet Clássico que continua viva e espalhada pelo mundo até hoje.
Foi só em 1961 que um trecho da versão do Kirov veio na primeira turnê da companhia ao Ocidente, sendo dançada inclusive no palco da Opéra Garnier. Nessa turnê de 1961 veio ao Ocidente também o bailarino Rudolph Nureyev, que remontaria durante o seu exílio da URSS, o terceiro ato da obra de Petipa — O Reino das Sombras — para o Ballet de l’Opéra de Paris, companhia que ele passa a dirigir a partir de 1983. Em 1989, Nureyev assiste novamente à versão do Kirovque ele conhecia, e dai vem um desejo que só será realizado em 8 de Outubro de 1992: remontar ele mesmo uma versão completa da obra para o Ballet de l’Opéra de Paris. Um projeto monumental, financiado por diversos parceiros da companhia francesa, deu origem a uma das maiores produções do grupo, um presente que o grande bailarino soviético deixou ao mundo, apenas três meses antes de sua morte prematura aos 54 anos. 23 anos depois, La Bayadère de Rudolf Nureyev chega à marca de 240 apresentações pelo Ballet de l’Opéra de Paris, sendo o grande evento do fim de ano da temporada 2015/16 da companhia.
O libreto do ballet, escrito por Petipa entrelaça dois triângulos amorosos. O Grande Brâmane do templo do fogo está interessado por Nikiya, uma bayadere do templo, e ela, apaixonada por Solor, um grande guerreiro. O amor de Nikiya é correspondido por Solor, porém, o Rajah deseja casar sua filha Gamzatti com o nobre guerreiro, que, mesmo apaixonado pela Bayadère, não pode negar a vontade do Rajah. Assim, o amor de Solor e Nikiya é coberto pelos desejos de outros pretendentes, mais influentes e mais poderosos. Tentando eliminar Solor de cena, o Brâmane conta ao Rajah que o guerreiro já havia jurado seu amor a Nikiya, porém, ao contrário do esperado, o Rajah decide se livrar da Bayadère, para que o guerreiro esteja disponível para sua filha.
Depois de Nikiya ameaçar Gamzatti com um punhal, ela recebe um cesto de flores onde havia uma cobra, que a pica. E, vendo o seu amado Solor noivo da filha do Rajah, Nikyia não aceita o antídoto que lhe é oferecido, e morre. No terceiro ato, encontramos Solor deprimido em seu quarto, recorrendo ao ópio para fugir da realidade. Em sonhos, ele é transportado ao reino das sombras, onde encontra a bayadère, e pode ficar junto dela.
É nesse ponto que acaba a versão de Nureyev do ballet. Originalmente, Petipa havia criado um quarto ato, que foi, com o tempo, retirado de cena. No quarto ato, éramos apresentados ao casamento de Solor e Gamzatti, com a sombra de Nikiya perseguindo o casal. E no momento em que o Brâmane junta as mãos do casal, os deuses se vingam da promessa quebrada de Solor, destruindo o templo e os ocupantes.
A Bayadère de Nureyev é vista como uma descendente direta da versão de Petipa. O bailarino a conhecia de seu tempo no Kirov, e ele mesmo foi um grande intérprete das obras de Petipa, antes de passar às remontagens. Em suas remontagens, o trabalho de Nureyev focava na valorização dos papeis masculinos, e na recriação a partir da atualização das personagens e da disposição geral do ballet, que ele não tinha problema nenhum em alterar, conforme considerasse mais significativo para o público atual.
Partindo desse preceito, mesmo causando mudanças na versão de Petipa, Nureyev se mostra fiel aos princípios de criação do grande coreógrafo, que sempre se mostrou bastante consciente do público e de suas preferências, se propondo a criar obras atuais e de seu tempo, e não as versões engessadas e fixas a que temos a impressão de assistir atualmente, quando tantas companhias anunciam uma fidelidade ao século XIX (em si algo já bastante discutível), como um grande ponto positivo.
A tradição que a Bayadère de Nureyev funda na Opéra de Paris é ao mesmo tempo continuidade e inovação. Fazendo com a companhia francesa o seu grande desejo de remontar essa obra em completo, Nureyev dá continuidade a um ciclo, trazendo de volta à França a obra de Petipa, mestre francês, mas que só ficou reconhecido por seu trabalho na Rússia, sobretudo com a companhia de onde vem Nureyev. Para essa nova versão, Nureyev convida antigos colegas de trabalho do Kirov, mas a obra é montada com o elenco francês da Opéra. Frequentemente referida como herança e presente de Nureyev para a Opéra de Paris, a obra é uma das grandes representantes do movimento entre França-Rússia-França, que marca a decadência e o renascimento do ballet clássico na Opéra de Paris.
Na temporada atual da companhia, os papéis principais foram dançados por artistas convidados — prática inusitada para a Opéra, que dispõe de um elenco enorme e capaz. Kristina Shapran, primeira solista do Mariinsky, formada pela Academia Vaganova, veio a Paris para dançar Nikia, e Kimin Kim, que foi bailarino do Mariinsky e passou para o ABT na temporada passada, veio reprisar o papel de Solor, que foi também o papel de sua estreia com a companhia estadunidense. O lirismo de Shapran é admirável e quase intoxicante, e fica claramente exposto em contraste com a realização técnica do papel de Gamzatti e dos solistas franceses. Mas ainda há muito que se questionar no sistema de “artistas convidados”, que, se a um passo abre um espaço interessante de novos contatos para o público, a outro diminui um espaço de oportunidade para os “artistas da casa”. E a lista de étoiles da Opéra que poderiam estar dançando esses papeis é longa.
Esse também é um ponto interessante para se pensar com relação à tradição da época de Petipa em que os bailarinos que criavam os papéis de um ballet eram os únicos a dançar esses papéis, dentro daquela companhia, até a aposentadoria. Na Opéra de Paris, os programas continuam listando as “principais criações” de cada bailarino, porém, com o sistema atual de rotação do elenco, é possível assistir até a cinco intérpretes diferentes no mesmo papel em certas coreografias. Aparentemente, aqui o foco é dado ao papel e não do intérprete — entendimento que é alimentado pelo fato de que, várias vezes, só sabemos dos intérpretes que dançarão a obra no momento em que entramos na sala. Tradição muito diferente dos programas de óperas da companhia francesa, que costumam ter apenas uma variação de elenco, apresentando metade da temporada com cada solista principal.
No todo, há muito o que se criticar na Bayadère. É inegável, por exemplo, a permanência de uma carga datada e envelhecida de um romantismo que já teve seu momento na dança (que foi um século e meio antes da versão de Nureyev, e que já era antiquado mesmo quando Petipa fez a sua versão do Ballet). Fundamentalmente, a criação é centrada em um exotismo gratuito, inspirado — mas muito livremente — em interpretações ocidentais de uma realidade muito distante, com pouquíssimo interesse pelos fatos dessas civilizações: uma inapropriação de conteúdos culturais para um simples prazer visual que fez com que, ao longo do século XX, em diversas vindas de bailarinas indianas ao ocidente, as mesmas fossem tidas como representações inadequadas e imperfeitas das Bayadères pelo público francês, acostumado aos tules (e peles) tão brancos de Taglioni.
Dentro do projeto de Nureyev de modernizar as obras para o público atual, também é um pouco ressentido o corte do quarto ato. A Bayadère assombrando Solor e, de certa forma, causando sua morte, eram algumas das grandes distinções da personagem feminina que a colocavam para além do período romântico. Alma-penada no Reino das Sombras, dançando com o seu amado que a abandonou como se nenhum problema houvesse nisso, Nikyia fica uma personagem feminina enfraquecida, mais uma Giselle, vítima impotente do mundo, das circunstâncias e da traição dos homens.
Não que esses aspectos desmereçam a grandiosidade do trabalho de Nureyev. Produto do Kirov, e, no Ocidente, propagador dessas tradições que se prendiam ao romantismo francês e à reforma academicista russa de Petipa, as escolhas que Nureyev mostra são precisamente aquelas que seriam esperadas. O que é preciso entender é que o processo de criação de Nureyev não tratava exatamente de novas versões, mas de atualizações, em que os únicos procedimentos de modernização de fato estavam ligados à recriação e recombinação de movimentos, e de apresentação de uma maior participação masculina — o que, apesar de ser um avanço importantíssimo, é, sobretudo, uma forma de auto-promoção do grande bailarino que ele foi.
No todo, o saldo da Bayadère é positivo. Não enquanto obra moderna, mas como um mergulho histórico. Fosse um quadro, poderia-se dizer que Nureyev escolhe usar alguns procedimentos e equipamentos de sua época para restaurar uma pintura antiga, de forma que tenhamos acesso a ela como se o tempo não tivesse passado. O tempo passou — é inegável —, mas a Opéra de Paris sempre teve uma articulação intensa entre a sua própria memória e o presente do grupo. E, nesse contexto, La Bayadère, uma das maiores produções de Nureyev, continua sendo grande marco da memória da companhia.