Clear, Loud, Bright, Forward / Opus 19 – The Dreamer / Thème et Variations | Ballet de l’Opéra National de Paris
O programa triplo que Millepied propõe para abrir o palco da dança na temporada 2015/16 do Ballet de l’Opéra inclui Balanchine, Robbins, e uma criação do próprio diretor. Reafirmando sua própria história como pertencente à dança estadunidense, o grande risco para Millepied, enquanto diretor, é o de aumentar a ênfase de seu deslocamento à frente da companhia francesa, ainda que evidencie o seu talento enquanto coreógrafo, e descendente da tradição fundada por Balanchine.
A tradição estadunidense de dança invade o Palais Garnier, com o programa triplo proposto pelo diretor de Dança do Ballet de l’Opéra de Paris, Banjamin Millepied, que inclui uma criação sua, uma estréia no repertório da companhia de uma obra de Jerome Robbins e uma coreografia de George Balanchine, esta presente no repertório da companhia desde os anos 1990.
Clear, Loud, Bright, Forward é a primeira coreografia longa que Millepied monta para o Opéra desde sua entrada como diretor do grupo. Apesar de ele assumir o posto desde a temporada 2014/15, apenas a partir do último mês pudemos começar a ver claramente traços de seu trabalho de diretor e programador, posto que, ao assumir a companhia no ano passado, ele estava dirigindo uma temporada previamente já programada, por sua predecessora, Brigitte Fefèvre. Clear, Loud, Bright, Forward, feita para 16 bailarinos do Corpo de Baile do Opéra, é uma combinação de articulações possíveis dentro do grupo. Com uma cenografia que limita o espaço da cena, e três fontes de luz que, pendendo do alto do palco, giram em mecanismos de relógio, alternando as possibilidades do público enxergar a dança e o espaço, Millepied coloca os jovens bailarinos em uma sequência de trechos musicais, transformados no estúdio em movimento, de forma a valorizar o que cada um dos bailarinos da obra tem de melhor.
Duos, trios e conjuntos de diversas formações ocupam a cena que é marcada de detalhes técnicos, desenvolvida dentro da musicalidade inesperada da trilha sonora original de Nico Muhly, parceiro de diversas criações do corógrafo, e revelam aspectos da tradição que Balanchine fundou na School of American Ballet — como as piruetas em quarta posição com alinhamento central, os developpés e grand battemants à frente e os equilíbrios em eixos angulares (não perpendiculares ao chão), que caracterizam a propensão ao risco e ao inesperado de Balanchine.
Sem Étoiles no elenco, a obra oferece uma oportunidade rara aos bailarinos do Corpo de Baile de ganharem experiência em papéis de destaque, que eles normalmente não teriam dentro da companhia, a qual mantém a tradição de concursos públicos anuais para a possiblidade de promoção dos bailarinos (do posto de Quadrille a Coryphée, depois à Sujet, depois a Premier Danseur, so então podendo ser promovidos a Étoiles — única promoção que se dá por nomeação direta da direção do Opéra, a partir da indicação da Direção de Dança).
Escolhendo trabalhar com esses estratos do elenco, Millepied também aproveita para se aproximar mais das próximas gerações de bailarinos da companhia que dirige, podendo começar a vislumbrar as carreiras futuras. Sendo construída a partir dos talentos específicos de cada bailarino, a obra não oferece tantos desafios, ainda que possua uma boa carga técnica e que haja um certo nervosismo em cena, compreensível por essa forma de estréia — não são bailarinos exatamente novatos, mas são bailarinos que, muitas vezes, não tiveram anteriormente a oportunidade de tanto destaque nas maiores cenas da companhia.
O programa continua com Opus 19 / The Dreamer, uma obra de Jerome Robbins dançada agora pela primeira vez pelo Opéra de Paris. Criada em 1979 para Barishnikov e Patrícia McBride, a obra tem um forte protagonismo masculino, e mostra diversas das influências do coreógrafo estadunidense, reconhecido por seus trabalhos na Broadway e com referências de jazz. Um uso frequente de poses, que se prolongam estáticas durante a cena, alem da articulação de mãos e pés flexionados, do uso da sexta posição, e do movimento diversas vezes conduzido pelo calcanhar, não pela ponta dos pés, colocam os bailarinos da companhia francesa em uma forma de movimentação quase que provocativa à tradição francesa.
Há uma articulação entre a narrativa e o abstrato — o personagem principal está em um sonho agitado, no qual encontra a bailarina, que aparece e desaparece da cena, em meio ao conjunto que organiza (ou melhor, desorganiza) o sonho e a imaginação do personagem. É um grande papel masculino, demandando experiência e qualidade interpretativa, numa obra limpa mas não tão fácil de acompanhar, posto que ela mesma trata de uma certa confusão, de um certo se perder. A obra marca também esse interessante protagonismo masculino, que não é inédito na companhia francesa, mas que aparece ao longo de sua história, depois do romantismo, apenas pontualmente, a tradição mantendo a maior frequência, até os dias de hoje, de protagonistas mulheres.
O coreógrafo também não é alheio ao repertório do Opéra, com outras 14 obras já dançadas pela companhia. Mas, dentro desse contexto, ele vem como uma reafirmação pessoal do diretor: Millepied dançou diversas das coreografias de Robbins no New York City Ballet, o coreógrafo norte americano tendo participado intensamente da formação profissional de Millepied, que retraça nesse programa suas origens estilísticas, remontando ao predecessor de Robbins, o fundador do NYCB, George Balanchine.
Balanchine coreografou Thème et Variations em 1947 para o grupo que se tornaria o American Ballet Theatre. A obra foi integrada ao repertório da companhia francesa em 1993, sendo dançada em algumas temporadas desde então. Surgida de uma proposta precisa, a obra faz uma reconstrução dos aspectos de grandiosidade da época de Petipa no Ballet Imperial Russo. Vemos quase que uma mistura entre os grandes ballets de Tchaikovsky nessa cena, que não possui um enredo, e retoma a característica da criação de Balanchine de construir a coreografia como uma forma de tornar a música visível.
Da música, último movimento de uma suite de Tchaikovsky, o coreógrafo retoma o processo de apresentação de um tema e desenvolvimento de variações sobre ele, trabalhando com um casal principal e doze casais entre solistas e corpo de baile, que desenvolvem o tema de movimentação e as diversas possibilidades de variação. A principal variação da obra pode ser tida como a do formato do grand pas de deux de Petipa, que aqui é reestruturado e alongado, sendo alimentado pelos solistas e desenvolvido pelo corpo de baile.
Thème et Variations foi coreografado originalmente para Alicia Alonso e Igor Youskevitch, e demonstra o apelo e a capacidade técnicas dos bailarinos, tendo sido frequentemente referida por seus intérpretes como a coreografia mais difícil de todo o repertório. São sequências de adágios que demonstram um pouco da melancolia do romantismo, seguidas de solos virtuosos que demonstram o apogeu técnico do academismo imperial russo, mas transportadas para essa situação de modernização do ballet que o coreógrafo propunha como investigação principal de seu trabalho, terminando o programa da noite com essa grande reflexão — cara ao momento atual do Opéra — dos limites entre tradição e modernização, que se faz presente, mais do que nunca, na atual temporada da companhia.
A temporada 2015/16 de dança abriu de fato com 20 Danseurs pour le XXe Siècle de Boris Charmatz, mas o programa de Charmatz foi tido como um evento especial, por ocupar os espaços públicos do Palais Garnier, e por se tratar de uma proposta completamente diferente do trabalho característico da companhia. Assim, é esse programa triplo, Millepied/ Robbins/ Balanchine, que marca o início da temporada na cena, no palco da Opéra Garnier.
A escolha das obras é curiosa: a um passo Millepied abre novos espaços para os bailarinos jovens da companhia, com sua criação, a outro exalta as estrelas, com as obras de Robbins e Balanchine. A um passo propõe uma valorização da tradição do clássico, a outro, demonstra um exercício de força sobre os limites dessa tradição. Porém, dentre as escolhas, o perigo percebido é o da possível exaltação de um só indivíduo: ele próprio. O programa apresenta Millepied entre os grandes coreógrafos estadunidenses, justifica sua própria trajetória artística, as maiores influências de sua carreira, e, acidentalmente, acaba reforçando a dificuldade de compreendê-lo como estando no lugar certo.
Millepied é francês e começou sua formação em dança na França — como somos insistentemente lembrados, quase que numa justificativa de seu posto na direção do Opéra. Mas foi no New York City Ballet que ele se realizou. Sua tradição — em movimento, em estética, em projeto artístico — é algo de um outro lugar. Enquanto coreógrafo, pela primeira vez ele se realiza plenamente com o conjunto francês. Talvez seja exatamente a escolha dos bailarinos menos experientes que garanta essa possibilidade de adaptação ao tipo de trabalho que ele propõe. Clear, Loud, Bright, Forward é uma obra interessante, e que cabe bem no repertório do Opéra. Mas não é apenas o nome da obra que é em inglês — ainda que seja perturbador ver Balanchine traduzido, enquanto a obra do francês que dirige a companhia francesa criada para o elenco francês seja em inglês —: toda a obra reforça um deslocamento.
Dentro de um outro programa, ela seria uma marca autoral de grande interesse. Aqui, nessa circunstância, ela reafirma que o projeto de Millepied é um projeto de mudança, mas com o risco de que essa mudança, ao invés de ser uma mudança parao Ballet de l’Opéra, seja uma mudança emprestada de outra tradição. Enquanto o objetivo reiterado para sua nomeação como diretor é o de empurrar os limites da companhia francesa, o risco que ele demonstra é o de empurrar a companhia a ser uma outra: não repensar e remodelar a tradição francesa, mas substituí-la por uma outra tradição. E este é um risco a ser levado a sério.