Críticas

Fluxo Invisível | Núcleo OMSTRAB

A temática da água é o foco da criação comemorativa dos 20 anos do Núcleo OMSTRAB, que reforça suas propostas de investigação sonora, de pesquisa de festejos populares, e de discussão de relações do espaço urbano. Fluxo Invisível, criticado para a Plataforma Digital Dança Para Todos.

Fluxo Invisível deságua em cena a trajetória de 20 anos do Núcleo OMSTRAB – escrito para a Plataforma Digital Dança Para Todos

 

Quando fala do trabalho do Núcleo OMSTRAB, seu criador Fernando Lee destaca a importância da pesquisa de festejos populares e da relação do espaço urbano e suas questões atuais. É dentro desse segundo grupo de conteúdos que vem Fluxo Invisível, criação que marca os 20 anos de atividade da companhia. A obra apresenta diversos fluxos sonoros, orientando a organização das cenas, que se articulam quase que didaticamente a partir de reflexões pontuais sobre a água.

Visivelmente, há pouco de líquido em cena. Pelo contrário, parecemos colocados em um espaço especialmente ressecado, no qual os bailarinos se debatem, tentando navegar em meio à dificuldade imposta sobretudo pelas muitas garrafas plásticas que caem sobre o palco no início do espetáculo. Aqui, o fluxo é bem visível, ainda que apoiado na transparência do plástico, e bastante perceptível, porque a movimentação dos bailarinos não apenas altera o espaço, mas cria intensas sonoridades percussionadas pelos corpos em contato com as garrafas.

O tanto de pesquisa sonora que costuma acompanhar o trabalho da companhia também se dirige a essas estruturas, e galões são usados como instrumento, além de canudos, canos, e mangueiras de onde também é possível tirar sons para integrarem os instrumentos tocados ao vivo. Em cena, uma intensa metonímia: no início do espetáculo percebemos a água pelos espaços onde ela poderia ser encontrada, e de onde ela parece mais ausente do que presente. Esse é o limite da percepção da discussão de uma crise hídrica, que tem seu maior ponto de interesse em uma passagem com os bailarinos em círculo, se afastando e se aproximando e trocando uma única garrafa de água da qual bebem compartilhadamente.

A sede aparece como tópico de destaque em Fluxo Invisível,colocando ênfase na nossa dependência primária e primitiva da água. Esse caráter de primitivismo, do homem-bicho ou bicho-homem, também é perceptível em diversas das estruturas de movimentação, que colocam os bailarinos num espaço comunal de comunicação pelos corpos e pelo contato entre os corpos. Assim, um novo fluxo é percebido em cena: o fluxo dos corpos que dançam. A entrada do público na sala já é marcada pelos bailarinos que se movem como se estivessem escorrendo pelas paredes de vidro da Sala Adoniran Barbosa. do Centro Cultural São Paulo, onde a obra estreiou É essa fluidez que é interrompida pela chuva de garrafas que marca a primeira cena no palco.

Assim, o Núcleo OMSTRAB discute não só questões de fluxo e de sua continuidade, mas também os seus entraves, os seus engarrafamentos, e são os corpos que se sobressaem como agentes de superação dessas barreiras: continuando, passando por cima de garrafas, continuando, esbarrando em outros corpos, continuando, como a água, que parece ter uma tendência a fluir, a não permanecer estanque.

A importância dos corpos é discutida em outras passagens de Fluxo Invisível, como em duas interessantes cenas em que os bailarinos vão se livrando dos figurinos, e tentam buscar a água que se esconde no suor de suas vestes. Os corpos voltam como elemento central da discussão do OMSTRAB ao final do espetáculo, quando vemos linhas sendo traçadas na pele dos bailarinos. Essas linhas, que se encaminham para todas as extremidades dos corpos, sugerem veias, e o fluxo — esse sim, a maior parte do tempo invisível — do sangue. Elas alimentam os bailarinos, que as procuram e auxiliam a continuidade de seu traçado por todo o seu corpo, numa demonstração desse desejo não especificamente pela água, mas por outro líquido vital.

Nessa celebração de seus 20 anos, que também inclui lançamento de CD, de um documentário, e de um livro-catálogo de suas obras, nessa nova criação o Núcleo OMSTRAB não se volta pontualmente ao passado, mas foca na continuidade de suas pesquisas, seus temas, e seus meios de realização de integrações cênicas entre diversas formas de arte. Essa continuidade, suas dificuldades e suas superações colocam à vista esse fluxo, que, mais do que apresentar a problemática contemporânea da água, discute questões pessoais e sociais, que parecem constantemente fluir pelas reflexões da companhia.

 

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