Romeu e Julieta | Ballet da Cidade de Niterói
O Romeu e Julieta de André Mesquita e Pedro Pires para o Ballet da Cidade de Niterói se apresenta como uma leitura da obra de Shakespeare, num momento de homenagem. Visto mais de perto, a interrogação que fica é acerca de quanto da obra de Shakespeare se transporta para esse palco e se coloca em cena nessa dança.
Como (não) (re-)contar uma história que “todo mundo conhece” — é a discussão da crítica do Da Quarta Parede.
Em 2016, ano em que se celebraram os 400 anos da morte de William Shakespeare, diversas são as homenagens ao dramaturgo inglês que surgem pelo mundo. Uma delas, a montagem 2013 de Romeu e Julieta pelo Ballet da Cidade de Niterói, está de novo em cartaz. A coreografia é do português André Mesquita, com direção de Pedro Pires, e fez temporada tripla em São Paulo, passando em abril pelos teatros municipais João Caetano, Arthur Azevedo e Paulo Eiró, em nove apresentações gratuitas.
De princípio, uma fuga com os tratamentos mais usuais de Romeu e Julieta na dança: a trilha sonora trabalha a partir de uma colagem de compositores minimalistas, evitando as reconhecidas composições de Prokofiev que costumam ambientar a história. Não só a identidade sonora, mas também a identidade visual é reformulada, com o abandono dos cenários grandiosos das versões de Frederick Ashton, John Cranko e Kenneth MacMillan, entre tantos outros, e a preferência por um palco limpo, ocupado ao fundo por panos esvoaçantes que permitem entradas e saídas dos bailarinos, além dos figurinos — roupas casuais, sem fortes marcas de época, em tons de azul e cinza — e, sobretudo, da linguagem coreográfica, que não se desdobra a partir do clássico normalmente associado a esse tipo de tema.
Entre os deslizes e rolamentos de um reconhecível estilo de contemporâneo alongado — de pernas lançadas, e braços que constantemente parecem tentar alcançar o inalcançável —, pouco surpreendente e bastante reaproveitável, os bailarino constróem, bem por cima, a história, também bastante batida, dos amores impossíveis. Parece que essa ideia de “bem batida” é fundamental para a obra em questão, que traz um tratamento de Romeu e Julieta como uma história “que todo mundo já conhece”, e que, por isso, não precisaria ser tão detalhadamente contada.
Porém, as alterações do enredo, mais que intrigar, confundem e complicam o entendimento, sobretudo para um público que não tenha o conhecimento da história para além da simplificação de: um amor impossível que termina na morte dos amantes. Não é essa a redução feita pala companhia de Niterói, porém, aquilo que se apresenta não carrega um tratamento tão a fundo do trabalho da peça que a inspira. Personagens fundamentais são suprimidos, uma figura que o programa do espetáculo chama de Oráculo é inserida, fazendo uma ponte entre a morte, o destino e o Frei Lourenço, mas sem se desenvolver de forma a levar a uma compreensão de seu lugar no todo.
Aqui despida de todos os suportes de adaptação, a versão de Mesquita e Pires da obra se concentra num “tom geral” do que possa ser a história, parte de uma malfadada distribuição que tenta ser equiparada dos papéis em cena, e constrói diversas novas possibilidades sobre o texto original. Não são hipóteses ou interpretações, posto que não parecem sair do material de origem: são apropriações, variações a partir de um tema genérico que seria a obra que a inspira.
Nesse ponto, a dramaturgia do Romeu e Julieta de Niterói se empobrece, pois não parece articular um plano, uma decisão de adaptação, assim criando uma dúvida acerca do próprio título para a obra — até onde é possível distorcer Romeu e Julieta até que a história se transforme em uma outra? Porém, acusar esse trabalho de infidelidade seria uma atitude simplista. Mais importante é refletir acerca dos meios como se constrói a relação com a obra de origem, posto que ela está lá colocada — em caixa alta, inclusive — no título e nas referências que aparecem pelo programa de sala.
Com a construção desse estilo de dança contemporânea quase neutro, contar uma história — sobretudo uma tão alimentada por detalhes fundamentais — parece tarefa complexa. E a dificuldade da identificação das personagens entre a massa dos conjuntos causa um estranhamento na primeira metade da obra: o público poderia, mais de uma vez, se questionar se Romeu e Julieta já entraram em cena ou não, poderia indagar quem são os Montéquio e quem são os Capuleto no todo, e se perguntar se estamos num prólogo criado para essa versão ou em uma adaptação belicosa da cena do baile. Uma tentativa de aproximação entre Teobaldo e a Sra Capuleto, mãe de Julieta, confunde acerca de quem é o pai da protagonista, e de se a mãe tinha ou não um caso com o sobrinho. Todos estes, temas que podem ser construídos a partir de interpretações específicas da obra, mas que, frente a uma platéia que não participou do processo de adaptação, carecem — não de explicação, mas — de desenvolvimento cênico.
No todo, fica a impressão de que coreógrafo e diretor partem de um princípio injusto de que todo o público já conhece a história — o que não é necessariamente verdade. E, assim, acabam se dispensando da tarefa de contar essa história, focando apenas em colocar em cena uma possível visão artística, interpretativa e pessoal, que tenham com relação à obra de origem. O resultado: entre os diversos elementos interessantes, e a boa performance da companhia, ficamos perdidos frente a uma obra que talvez tente ser uma adaptação, talvez tente ser uma criação; talvez tente ser narrativa, talvez tente ser abstrata; talvez tente ser uma homenagem a Shakespeare, mas talvez resulte apenas numa homenagem a si mesma — posto que pouco do trabalho do autor resta perceptível nessa versão.
Em si, essa incerteza não é um problema, e seria de fato uma opção possível e totalmente pertinente à contemporaneidade na cena da dança. Sobre essa opção paira não um julgamento da sua escolha, mas o entendimento da sua realização — essa sim, bastante dificultosa. De uma certa forma, apesar de termos um Romeu e termos uma Julieta, o Romeu e Julieta que encontramos não é aquele que se espera, e a nova construção não se demonstra nem se desenvolve o suficiente para que seja compreendida completamente.