Musical infantil, mas de talentos e dança adultos
A versão brasileira de “Peter Pan – O Musical” traz adaptações maravilhosas, e interessante espaço para as coreografias de Alonso Barros
escrito para o Criticatividade
Com direção de José Possi Neto, a montagem brasileira de “Peter Pan – O Musical” coloca em cena história e personagens já conhecidos. Frente ao numeroso elenco, à quantidade de movimentação presente no espetáculo, e aos diversos números de dança, não é exatamente complicado falar desse musical a partir do ponto de vista da dança.
Como é de se esperar em uma produção desse porte, há um tanto de fronteiras borradas entre alguns de seus elementos, e nem todo o movimento que acontece em cena pode ser creditado à coreografia, assinada na versão brasileira por Alonso Barros — e originalmente sob a responsabilidade do grande diretor e coreógrafo Jerome Robbins.
A mistura dessas duas funções na criação da versão Broadway de 1954 pode ser um dos sinais a apontar para a característica tão dançante do personagem-título — percepção que também é ajudada pela presença de vôos em cena. Como resultado, Peter Pan demanda um trabalho denso de interpretação vocal, musical, de atuação e de dança.
Questões muito práticas têm determinado, desde as primeiras montagens cênica da história em 1904 que Peter Pan seja interpretado por uma mulher. A versão brasileira, felizmente, faz diferente, e traz Mateus Ribeiro no papel, selecionado em audição dentre mais de 4000 candidatos. O resultado é ótimo, porque dá conta de trabalhar a inocência e a juventude do personagem através da atuação, sem se apoiar numa infantilização associada ao feminino, que já tinha no enredo uma certa descompensação, com a Wendy sendo transformada em uma figura materna — problema esse que resta sem solução, e como testemunha da idade da obra, que soaria ultrapassada fosse criada hoje.
Ribeiro da conta do muito que lhe é pedido pela proposta. Seu Peter realiza bem as cenas aéreas, as coreografias, e o canto, dentro das letras notavelmente bem adaptadas — entre as melhores em versões brasileiras de musicais consagrados — por Bianca Tadini e Luciano Andrey.
Ainda que toda a direção de movimento e os blockings sejam bem realizados, a coreografia, em si, sobressai mais notavelmente em alguns momentos, nos quais abre-se espaço para a dança. Não se trata, em nenhuma medida, das cenas aéreas, que estão entre as mais fracas do espetáculo, e que podem funcionar na sedução de um público infantil, mas que estão no limite do interesse, mesmo quando bem feitas.
O problema com esse tipo de limite é que e fácil demais escorregar e passar para baixo dele, como acontece, por exemplo, na cena da luta final entre Peter e o Capitão Gancho. Ali, a simplificação e pobreza de desenvolvimento quebra um tanto da fantasia, e deixa um tanto de espaço vazio numa resolução cênica bem enfraquecida.
No entanto, quando se abre espaço para a dança, podemos ver o bom trabalho de Alonso Barros, insistente no dinamismo e nas pernas fortes, e apostando em linhas e em ocupações quase regulares da cena, em que o movimento do grupo é visto ora como um conjunto de expressões individuais, ora como um uníssono corpo de baile.
Destacam-se como mais dançantes os índios da peça, e cenas como Uga Uga, que tem uma boa integração entre os núcleos, e um ótimo e longo número de dança. Essa cena, em específico, tem um tanto do que parece uma marca estrutural da narrativa desse musical, que é a divisão brusca entre três núcleos — as crianças, os índios e os piratas — e que, coreograficamente, se reflete num aspecto de dance crews, como se a movimentação fosse por vezes competitiva e por outras colaborativa entre membros de diferentes núcleos.
Para além da dança, é digna de nota a performance do Capitão Gancho de Daniel Boaventura, fortemente afetado, mas especialmente bem realizado em sua Valsa. Do outro lado do espectro, nem todas as decisões são acertadas: a fada Sininho, por exemplo, normalmente reduzida a uma luz pelo palco, ganhou corpo, por algum motivo inesperado e que não se entende de fato na construção apresentada, e que, ao invés de acrescentar à magica da situação, a deixa mais crua.
No todo, o saldo é positivo. Há uma aura infantil, mas com razão para tanto, dada a história que o espetáculo retrata. E, mesmo com isso, ele não é sem interesse para adultos, porque há matéria e realização de qualidade no espetáculo. Há talento e boa coreografia, e, inegavelmente, boa dança.
Esse aspecto não é em si uma grande novidade: o espaço para os musicais no Brasil tem crescido exponencialmente, revelando um campo de trabalho, um gosto do nosso público por essa forma de espetáculo, e revelado novos (e já conhecidos) talentos de muitas áreas. O que falta, ainda, muito mais do que a investigação autoral (que também já desponta), é que essa produção seja acompanhada de reflexão vinda de todas as áreas que a envolvem — e a dança não pode ficar para trás nessa missão.