Críticas

Lembranças dissolvidas em espaço compartilhado

A crueza da memória e do espaço do deserto urbano são trabalhadas nas formas poéticas de Alex Soares e Paula Zonzini

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Criação de 2013 de Alex Soares e Paula Zonzini, “Oroboro” tem todo o aparato para prender o público na cadeira. É uma daquelas obras com as quais, por acidente, eu acabei desenvolvendo uma relação afetiva inesperada e profunda, sem exatamente conseguir traçar os motivos para isso. Revê-la, anos depois, em nova montagem e com novo elenco, simultaneamente recupera percepções da primeira vez, e sugere novas outras tantas.

A sedução é instantânea, começa na cena inicial, pautada por um efeito de circularidade provocado pelo uso de um foco de luz que um dos intérpretes carrega nas mãos e que vai girando em torno de si, como se fossem os ponteiros de um relógio marcando o tempo. As voltas vão revelando novos posicionamentos dos bailarinos, que desaparecem no escuro e se recolocam para novas luzes.

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O percurso narrativo coloca num abismo uma história que é contata e recontada verbalmente, com um dos intérpretes se apresentando como se fosse o coreógrafo, e falando de sua construção, e de como ela termina, numa descrição da primeira cena a que assistimos, com a luz-relógio. O texto é reconstruído e refeito, com alterações notáveis de suas frases, que se misturam, se quebram, se alteram, mesclam a ordem lógica e se desfazem, estabelecendo mais um indício dessa proposta de mistura entre fins e inícios.

O domínio é o da incerteza, porque parte de existentes tão concretos como por onde a coreografia começa e por onde ela termina, mas abala suas formas mais simples, apagando progressivamente o discurso e a estrutura cênica para nos colocar num carrossel: redondo e contínuo, no qual começo e fim se misturam, entre a repetição e a irrelevância das pontas.

A imagem do carrossel é elaborada em um dos melhores momentos da obra, no qual um projetor de slides é usado para colocar fotos antigas sobre os corpos dos bailarinos, que, tal qual o tambor da máquina, vão progredindo num círculo em que apenas um a cada vez é iluminado pela foto-lembrança.

O tempo e sua passagem são marcados pelo figurino, testemunha de algum outro momento, e pelos corpos que se dobram e curvam para o chão. Infância e velhice vão se misturando, e delas se sobressai a potência de uma coreografia articular, que explora os modos como um corpo é afetado e dinamizado pelos outros, o como um corpo toma forma, descobre o espaço, e, através da tensão e da resistência cria estruturas temporais, propagadas pela trilha sonora repetitiva, insistente, permeada de sons de crianças.

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O efeito do todo é uma tendência circular e espiralada, ainda que não exatamente cíclica: os movimentos seguem uma estrutura, mas não se repetem tanto, construindo uma bela reflexão sobre as pessoas e suas experiências — semelhantes, mas ainda individuais. O foco na memória é inteligentemente dissolvido evitando uma reflexão hiper-pessoal e particular, numa quase mistura cênica de surreal com absurdo, como se as lembranças fossem se desfazendo, se misturando, derretendo e se confundindo, para chegar a um final abrupto da obra.

Esse final é do tipo de proposta que provoca. Sua forma brusca perturba, porque não estamos prontos para essa chegada. E, ao mesmo tempo, não poderia ser outra a saída na construção dessa obra, que do contrário, cederia ao fácil clichê das obras sem término, presas por demais em sua própria circularidade.

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É bom rever uma obra como essa com tanto tempo tendo passado. O tempo, material do próprio espetáculo, faz bem a ele, ainda que a ligação emocional me coloque de volta ao espaço de lembrar da primeira vez, e de procurar, até injustamente, no trabalho, senão sua reprodução, sua continuidade. Porém, grupo e coreógrafo não se deixam perder nessas armadilhas, e nos mostram seu melhor potencial, mas é difícil não provocar a nostalgia numa reflexão sobre a memória.

É de assunto completamente distinto a segunda obra que completa o programa dessa temporada apresentada no Sesc 24 de Maio, “Desert Dweller”, que só agora vê a sua estreia brasileira, apesar de ser fruto de uma premiação de Soares na National Choreographic Competition do Hubbard Street Dance Chicago de 2014.

Ainda que o tema seja distinto, há um bom tanto de continuidade, dada a proximidade da criação de ambas as obras. Infelizmente, num programa duplo como esse, isso funciona no contra. São perigosas as similaridades nas estruturas de apoios, não porque precisem ser sempre novas, mas porque, assim apresentadas em sequência, arriscam o inóspito terreno de “mais do mesmo” — que não é nem justo nem verdadeiro a um artista do calibre de Soares.

Aqui, os apoios são usados para ilustrar os sistemas de co-existência. Ao som do metrô, dos carros e da rua, o deserto que vemos não é inabitado e vazio, e lida notavelmente com a sensação do estar sozinho e meio aos outros. Perpassa a obra uma tônica lírica em dar as costas ao outro, em virar o rosto, em evitar o olhar e o contato íntimo da vista, mesmo quando os contatos físicos são intensos e se desdobram em construções de ações coreográficas. O efeito é o de um pungente retrato de ansiedade, de anseio, de desejo e de quase angústia. Suas razões são pouco claras, mas sua poética é potente.

Talvez a obra de fato nem precise de um tratamento tão aprofundado do tema, tão imersos nos encontramos nessa situação contemporânea de questionar o limiar do espaço individual dentro do grupo e das muitas formas de distanciamento que insistentemente nos aplicamos, para nos tornarmos habitantes desse deserto urbano. O que aqui se faz, e se faz muito bem, é caracterizar esse espaço pela dispersão dos corpos e sua associação, que agrada e nem deveria causar surpresa: o trabalho de articulação e a ocupação do espaço são boas marcas maiores do trabalho de Alex Soares.