“Exílio, em palavras e movimento (‘Do Desejo de Horizontes’)”, escrita para o Criticatividade
Como retratar o desterro? — essa parece uma das grandes questões da coreografia de Salia Sanou, de Burquina Faso, que abriu a Bienal SESC de Dança em Campinas. A conclusão? O desterro ‘e conflituoso. Mistura o previsto e o imprevisto, o controle e o ímpeto, o sozinho e o grupo. E tudo isso se reflete na composição de uma coreografia detalhadamente programada, mas com cara de improviso, com uma carga, intensa, de imediatismo, como se tudo a que assistimos conseguisse ser, a um só tempo, repetitivo e único.
Coreografia de pernas que sustentam e de braços que desbravam o espaço. Muito bem iluminada, com uma produção ao mesmo tempo intensamente técnica e poética, vemos uma cenografia em constante mudança que constrói a transitoriedade das experiências de vida dos refugiados — inspiração para a obra. Sem ser trágica, nem mesmo sombria, mas representando algo que o tempo todo relembra restrições e peso, ameaçando fraquejar, mas mostrando as estratégias de resistência do corpo, de se fazer ver, de chamar a atenção e resistir entre os limites de estruturas rígidas.
Como ponto de partida, o exílio oferece um material de quase constante movimento e continuidade, desenvolvendo tanto a percepção do indivíduo como das relações entre esses indivíduos — nas muitas duplas que se formam e nos conjuntos que mostram uma força maior do que a de uma pessoa só. E mesmo no que poderia ser visto como um vislumbre de romantismo, os duos ainda mantêm o dialogo firme entre o prender e o se entregar (ao outro).
A obra passa muito depressa do militar ao convivial, do ameaçador ao festivo, num retrato quase líquido e em constante transformação de uma realidade arriscada, e o tempo todo incerta. Mesmo quando se constrói um momento de brincadeira e descontração, ele é puxado de volta para a outra realidade, evocada também pelos trechos do texto de Nancy Houston que aparecem em cena em francês.
O texto nos puxa para a aspereza do exílio colocada em palavras. Em entendimentos de “pessoas que quase não são pessoas”, numa poesia cadente, tal qual os movimentos dos bailarinos, mas sem acontecer concomitantemente a eles: a estrutura da cena parece parar para ouvir esses relatos, levantando uma relevância da memória do indivíduo.
Mais ao final, o texto fala da necessidade de ir para um outro estado de coisas, e a cena se transforma, uma última vez, com a entrada de quatro scooters elétricas no paco, mantendo a discussão do movimento quase perpétuo retratado pela obra, e finalizando numa sequência em círculos que lembra um carrossel, ocupado, não por cavalos e carruagens, mas por essas figuras exiladas, em seus instantes de felicidade, mesmo quando presas a uma máquina de repetição. De certa forma, uma felicidade triste, pungente, capaz de transmitir a percepção do indivíduo e de sua situação, sem nunca descarrilhar para um relato documental.
Veremos nessa Bienal outras obras que dialogam com esta, e com esses mesmos procedimentos: com esse espaço de dar voz artística a certas realidades — violentas, assustadoras, escondidas, negadas — sem se construir como discurso em debate, mas pela potência da dança contemporânea. E, quando chegarmos ao último dia, que se encerra com Para que o Céu Não Caia de Lia Rodrigues, talvez seja possível entender um pouco melhor a proposta dessa Bienal, que não é temática, mas na qual se vê uma clara tendência, começando com o exílio e terminando nos rituais, e o tempo todo falando de ocupar, de resistir, de continuar, contra todas as adversidades.