* escrito para o Criticatividade
“A Boba” de Wagner Schwartz é um exercício de equilíbrio. E ele começa no sentido literal — de se equilibrar uma tela pelas paredes do palco, inteiro aberto —, mas continua em um sentido muito mais metafórico e ampliado para a cena da arte da dança e da performance no Brasil: como equilibrar pensamento, proposta e conteúdo em uma obra?
Muito levemente inspirado no quadro “A Boba” de Anita Malfatti a obra de Schwartz parece abandonar a maioria das referências ao seu existente concreto e seu processo para se focar no chamariz da oposição, do questionamento, e da opressão.
Com recepção bastante conturbada em São Paulo em sua primeira mostra, o quadro de Malfatti foi questionado entre paranoia e a mistificação, numa briga opondo um estilo mais tradicional de expectativa e apresentação das obras de arte, e as propostas ligadas à vanguarda e ao modernismo. Aqui, encontramos um verdadeiro paralelo para pensar “A Boba” de Schwartz: entramos no terreno movediço, entre a obra sem proposta, e a proposta sem obra.
Sozinho no palco vazio, Schwartz anda com uma tela de uma reprodução da obra de Malfatti, que ele arrasta pelas paredes e o chão do palco, equilibra nas mãos, braços, entre as pernas no meio do joelhos — no exercício de quase sexualização animalesco —, para chegar um pouco lugar estético, metafórico ou artístico.
É uma pena que esta seja a grande produção em dança da MIT, que mantém seu olho voltado à performance. Falta discernimento quanto a que justifica a produção dessa obra neste momento — que parece ser sustentada unicamente por questões problemáticas da recepção de uma obra anterior do mesmo artista.
Depois dos cruéis e malfadados eventos da apresentação de “La Bête” no MAM, Schwartz entrou para uma lista de artistas preconceituosamente mal olhados por uma parcela — não de público, exatamente, mas — da sociedade, ligada ao extremismo, e a uma incompreensão generalizada da e indisposição para a arte. Aquela obra, que já passara por São Paulo e outros tantos lugares com modesta recepção, foi usada de forma tola para articular uma oposição a não se sabe exatamente o quê por trás de uma explicação sem fundamento de se tratar de pedofilia. Não era o caso, e não será o caso, mas foi o suficiente para trazer ao reconhecimento do amplo público o nome do artista. E também para organizar uma perseguição virtual, por redes sociais, de assassinato de caráter que tem sido, desde então, o ponto principal da obra do artista. De repente, o performer chegou, da pior maneira possível, ao reconhecimento.
Aqui, estamos num mesmo barco. Aa proposta não se baseia em qualidade artística ou mérito criativo, inovação, valor, o que quer que seja — reduz-se ao estandarte da resposta à opressão e ao reconhecimento de um artista oprimido. Mas aqui se espera que haja mais matéria em uma obra em tamanho evento do que sua redução ao direito do discurso da vítima. Do contrário, caímos, ironicamente, na armadilha que Lobato armou em sua infame crítica à obra de Malfatti: entre a paranoia e a mistificação.
Do quadro “A Boba”, figura de isolamento, desgaste social, de vergonha e discussão, nada é trabalhado. Transformado em mero chamariz para olharmos para o intérprete, é a pretensão da obra como proposta. O programa nos fala sobre a construção do trabalho a partir do conhecimento e reconhecimento do artista da obra. Ele nos diz ter partido de suas cores para pensar e perceber na imagem um Brasil que ali, de fato, não está, mas lhe foi sobreposto.
O que vemos então, é o artista que encontra a obra, e ao invés de transformar o quadro em performance, transforma a sua experiência desta tela, no nível mais superficial, em sua cena. “A Boba” de Schwartz não traduz, transforma, rebate, digere, ou lida com “A Boba” de Malfatti enquanto obra. Ela lida com a referência da mesma forma que o não-publico sem esclarecimento e sem referências lidou com “La Bête”: a partir da superfície, sem se deixar tocar, sem abrir espaço para que a obra fosse capaz de transmitir algo que já não estivesse predisposto a ser encontrado.
Os extremistas olharam “La Bête” dispostos encontrar pedofilia e por isso encontraram. Não porque ela estivesse na obra, mas porque é isso que estava em seus olhos e isso se reflete em sua leitura. Schwartz olhou para “A Boba” sem grande disposição de encontrá-la, limitou-se ao espelho, a encontrar-se, na frente da obra, e nos apresentar o seu encontro consigo mesmo como se fosse a arte. Poderia ser, se fosse a obra. Poderia ser, se fosse a proposta. Mas não é nenhum dos dois. É um tanto de devaneio. Perigosamente beirando, de novo, a paranoia ou a mistificação.
O devaneio termina exatamente onde começou: no contato primário com a obra. Só ao final da performance o quadro é de fato colocado para ser visto pela plateia, e, nesse momento, Schwartz deixa cena. Alguns instantes de silêncio nervoso, risos da plateia e, e uma sequência de aplausos modestos. Na saída do teatro, o trocadilho com o nome da obra parecia inevitável.