Súplicas epistolares
Márcia Milhazes dá profundidades a escrita de cartas, numa cena de anseio e distância lindamente construída em “Guarde-me”
É numa cena simplista e esvaziada que Márcia Milhazes constrói “Guarde-me”, obra de 2017, segunda de uma trilogia ainda não terminada, na qual a experiente coreógrafa se inspira em cartas para criar um duo dinâmico de enlace, trabalhado pendularmente entre os dois bailarinos, como se eles se escrevessem e respondessem, constantemente — para construir a temática epistolar.
Ajudando a transpor em movimento essa característica da comunicação pelas cartas, que presume um distanciamento e um deslocamento, quase toda a movimentação dos bailarinos se dá sem que eles se olhem, ainda que eles constantemente se toquem e interajam. Cria-se assim um tempo e um espaço que não são integralmente concomitantes, e que se ilustram pela sensação que as vezes nos atravessa, de encontrarmos em cena dois solos sendo apresentados em conjunto, proposto na lógica de que as cartas são escritas individualmente, separadamente, ainda que de um para o outro.
Essa coreografia, muito bem desenvolvida junto da música, trabalha uma dinâmica inconstante (ainda que sequente) de um relacionamento e de sua comunicação, através do vai-e-vem dos movimentos, e da propulsão pela alteração dos pesos, que favorece o andamento de uma cena cuja principal característica é a continuidade, como se ela fosse ininterrupta, e preenchida de anseio, saudade e antecipação, como todo o processo de não se bastar em viver, mas precisar desse compartilhamento, desse reviver e recontar que é da forma da carta, e do dedicar o seu tempo a acompanhar o conto da vida de um outro alguém.
Ainda que não seja explicitamente amorosa, a obra é inevitavelmente de uma proximidade entre os intérpretes, que não se constróem como personagem, mas para quais começamos a construir, um tanto por sugestão e um tanto por projeção, histórias e relações. Nesse processo, somos ajudados por uma blusa, inicialmente vestida pela bailarina e removida bem no início da obra, e que troca de mãos e de corpos ao longo da coreografia. Alegoria de carta, não há uma noção completa da posse, porque o tecido se troca e se toca ao mesmo tempo como se pertencesse a quem o tem em mãos e a quem o deixou.
Assim, os bailarinos vão dançando juntos sem estar exatamente juntos, imersos nesse espaço onírico da cena e da iluminação que fazem quase um aquário, uma bolha, um pensamento, memória ou desejo. Algo que não é exatamente material e nem concreto, que é pautado pelo tempo poético da saudade.
A escritura coreográfica é intensamente caligráfica, mas multidimensional, porque se escreve e se inscreve pelos corpos e pelo espaço, assim transpondo o escrever a carta para \ além do sentar a mesa e colocar tinta no papel, transformando-o num ato de corpo todo, de intensão inteira, e de intensidade enorme.
Há um sentido de direcionamento, com a obra que começa na bailarina e termina no bailarino, num bom espelhamento do direcionamento e envio da carta, do sistema de destinatário: a carta não é escrita para si mesmo, mas para o outro, com quem se constróem estratégias de manutenção da proximidade, mesmo que resista uma aparência de deslocamento — tanto cênica quanto temática.
É nessas estratégias que vão se propondo as construções de percorrer, de não soltar, de perseguir, de acompanhar, de compartilhar sem necessariamente conviver, sem necessariamente integrar as ações de um e outro — há uma ligação e uma interação claras, mas elas são mais intencionais do que práticas. E é essa intensão que insiste no título da obra, forma da assinatura da carta, restando como um pedido, um tanto gentil, um tanto carinhoso, e inevitavelmente angustiado, de quem escreve para quem recebe, para que não seja deixado de lado: guarde-me.