Críticas

Movimento e som recortando o espaço

Com luzes nos pés, os bailarinos do Gumboot Dance Brasil tentam passar a percepção da tradição do Gumboot para o momento e espaço atuais

escrito para o Criticatividade

A técnica do Gumboot, originária da África do Sul, carrega a tradição de uma movimentação criada com propósito comunicativo entre os mineradores das minas de ouro, que não podiam conversar durante o horário de trabalho. Esse espaço fechado, escuro, quase uma gruta, gotejando e repercutindo, cria o ambiente de “Subterrâneo”, obra em que o Gumboot Dance Brasil propõe misturar essa referência original com uma situação urbana, daqui, e mais atual.

Para isso, essa gruta cênica é invadida pelo som alto das vozes e da percussão corporal dos bailarinos bem treinados do elenco. Apoiado num tanto de ritual, de festivo, quase devocional, o começo lento vai rapidamente tomando ritmo — intenso e se propagando, como se fosse o eco das batidas dos pés ecoando por esse espaço fechado, e desesperado para transmitir uma mensagem, para dizer algo a alguém.

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Dessa aura quase de festa, nos afundamos dentro da mina, na qual os intérpretes entram com uniformes. A movimentação continua forte, porém mais seca e ficando mais e mais padronizada. Ali veremos o trabalho do stepping com as botas — preciso e sincrônico —misturando um tanto de cativante com algo de hipnótico.

A coreografia de Rubens Oliveira é altamente corporal, intensa, densa e bem trabalhada por um elenco tônico e muito disposto. Ela se mancha em alguns instantes com um tom cômico mal resolvido e sem desenvolvimento que os equipare ao todo a que assistimos, pedindo um cuidado de direção que falta na continuidade de uma obra de ótimas partes.

Uma proposta de boas partes nem sempre garante um todo coeso — risco contínuo que cabe às direções cênicas resolver, para apresentar ao público algo que faça o seu sentido. Se o desenvolvimento do elenco é elogiável, assim como a proposta de sonorização, por outro lado temos uma participação cênica dos músicos no palco como uma dessas ocasiões que abrem espaço para o duvidoso, tendo menos sucesso enquanto resultado cênico.

Uma pergunta importante é como a movimentação e a pesquisa coreográfica desse projeto desenvolvem de fato o tema e se constituem em proposta. Se a ligação da técnica com o espaço cênico são diretas, elas também demandam um tanto de conhecimento histórico e colateral que nem sempre está à disposição do público. Se o imediato da origem responde facilmente a discutir minas subterrâneas, resta entender como essa proposta se transpõe para a outra realidade que a obra intenciona tocar — a urbana e atual.

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O paralelo metafórico está claramente estabelecido. Trata-se de uma discussão de populações marginalizadas, à beira de sistemas excludentes e de rejeição, que têm suas vozes cortadas, seus espaços cercados, suas liberdades reprimidas, suas expressões desvalorizadas. O que falta aqui é um tanto da costura que ligue os muitos pontos, e, sobretudo, que permita a esse grupo e a seus muitos talentos usar dessa referência sem a necessidade de recontar sua história.

Assim como a iluminação, as cenas da obra vão se recortando em insistentes blecautess: parecem instantes de entrevisão, em si interessantes, mas que têm dificuldade de se formar num todo. Dentre todas as cenas, a que faz cativa é a que trabalha com as luzes nos pés dos bailarinos, transformando a coreografia e a sua métrica, sua precisão e sua insistência, em formas de percepção alteradas do espaço da cena.

Nesse caso, em específico, as luzes se transformam em movimento, e o movimento se transforma em recorte do próprio espaço. Ali estamos aprofundados no título e em um dos aspectos da proposta. Ali, a qualidade dos resultados do elenco mostra seu maior grau, exibindo o que se pode fazer com o próprio corpo, mesmo em situações limitadas e limítrofes. Pelo lado negativo, essa interessante percepção alterada do espaço é sobreposta por outras tantas luzes, em focos espalhados pelo palco, que acabam criando uma aura, pouco inovadora, de show musical.

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Há muito de interessante no trabalho da Gumboot Dance Brasil, que merece ser cultivado e desenvolvido, e suas escolhas mais simples são as que têm melhor realização — desde a forma como se estrutura a movimentação, até os figurinos, que vão direto ao ponto, sem se gastar em contornos desnecessários. O risco é recobrir essas boas propostas com uma preocupação de espetacularização: o excesso de luzes, o excesso de cenografia, os músicos no palco, arriscam roubar a atenção daquilo que o grupo tem como trunfo, e que é o que mais interessa — uma movimentação única, muito bem executada, dentro de uma ideia interessante.