Críticas

Guests | Groupe Grenade

O projeto do Groupe Grenade, dirigido por Josette Baïz é único. Não tanto pela manutenção de uma companhia formada unicamente por crianças e adolescentes, mas pelo tipo de trabalho que eles desenvolvem. O propósito, muito além da formação, centra na criação poética, e os bailarinos, a despeito da idade, que frequentemente é usada como ponto negativo em grupos jovens, respondem os desafios à altura.

Em temporada em Paris no Théâtre de la Ville, a criação de 2014, Guests, reuniu 21 bailarinos de 8 a 20 anos de idade, um ano inteiro de trabalho, e sete coreografias de diferentes coreógrafos, que foram criadas ou remontadas para o grupo, num programa que dá uma boa lição para companhias de repertório e a constante pressa do tempo de criação e montagem de obras de dança.

Essa não é a primeira vez que o Grenade faz um espetáculo de múltiplos criadores. Há dois anos, por exemplo, na comemoração de 20 anos do grupo, o programa anual foi composto de uma série de criações originais. Porém, essa é a primeira vez que eles trabalham na mesma obra com nomes tão grandes e tão distintos quanto Dominique Bagouet, Lucinda Childs, Wayne McGregor, Hofesh Shechter, Rui Horta, Emanuel Gat e Alban Richard.

A primeira coreografia da noite, Tricksters, de Alban Richard, é a única que pode ser considerada simples. Uma criação para os bailarinos mais novos do grupo, baseada nas expressões de gárgulas. Se, a um tempo, não há grandes proezas técnicas nem um uso surpreendente do espaço – os bailarinos estão em pequenas plataformas, um pouco acima do chão, e nelas permanecem durante toda a obra -, o entendimento da música pelos bailarinos surpreende bastante. Ainda que cada um deles tenha movimentações individuais, que identificam o próprio projeto do Grupo de criação de artistas autorais desde cedo, a sinergia e capacidade de percepção rítmica que eles demonstram vão além do que se poderia esperar quando os vemos em cena inicialmente. Os gárgulas de Richard recebem o público como monumentos, questionando a estática e a dinâmica, e oferecendo uma entrada no universo desse grupo.

Uma vez dentro da realidade do grupo, Guests continua com um duo de 1984 de Dominique Bagouet, Déserts D’Amour, que apresenta dois dos bailarinos mais interessantes desse elenco. Aqui, novamente o trabalho com partitura coreográfica e tempo musical aparece no centro do trabalho do Grenade. Essa compreensão só vem a ser reiterada ao longo do espetáculo: com Concerto de Lucinda Childs, sete bailarinas exploram a vertigem do repetitivo da coreógrafa. Particularmente relevante porque a obra foi apresentada pela companhia de Childs no mesmo palco, em 2010.

Na sequência, um trecho de Entity de Wayne McGregor é dançado por um conjunto dos bailarinos mais velhos do Grupo. A obra, emblemática por seu uso de luzes, projeções e cenografia, como em muito do trabalho de McGregor, aqui aparece despida, e todo o foco cabe à dança. A energia do impulso e a exploração do líquido e do mecânico pelo coreógrafo talvez sejam o maior desafio de Guests. Realizar o que o coreógrafo propõe não é tarefa fácil em nenhum grupo. Aqui, o processo do trabalho de Baïz com seus bailarinos, seu foco na dança autoral e na descoberta do corpo próprio, mesmo em criações de outros indivíduos (eles também autorais), mostra seus melhores resultados, e a confiança com que os bailarinos do Grenade se apropriam dessas obras sugere a formação de novas estrelas.

Dessas estrelas, talvez a que mais se destaca seja Anthony Velay, que dança o Spotlight Solo do pioneiro da dança contemporânea portuguesa, Rui Horta. Com apenas um foco de luz, o solo coloca um bailarino em frente a um microfone que é arrancado do palco quando a cena começa, sendo puxado pelo cabo. Sua única outra possibilidade de comunicar: a dança. A coreografia explosiva coloca em confronto o interior e exterior das pessoas e a possibilidade e as tentativas de comunicação. Ponto alto da noite, poderia ser apresentada por qualquer companhia sem ficar devendo em escolha de repertório, em casting, em técnica, nem em interpretação.

Guests se encerra com duas coreografias que também já haviam sido apresentadas no de la Ville, Brilliant Corners de Emanuel Gat, e Uprising de Hofesh Shechter. Brilliant Corners coloca um conjunto mais jovem em cena, numa clara exploração das dinâmicas de criação coreográfica. Verdadeira aula de tempo, espaço, peso, mecânica, força e tantos outros elementos, a obra fica um pouco enfraquecida – artisticamente – num grupo de (ainda) alunos. Por outro lado, se pensada a partir do próprio projeto formativo e criativo do Grenade, esse mesmo aspecto passa a ser precisamente o que se valoriza na obra: não a demonstração da compreensão exata de como aprender e realizar uma coreografia, mas a descoberta desses processos, que se revela para os bailarinos assim como para o público, numa experiência compartilhada que nos coloca no lugar deles.

Finalmente, Uprising, de Hofesh Shechter trata dos motins e tumultos das periferias francesas de 2005, propondo mais uma obra com tema para o espetáculo. E esse, um tema forte, que aparece completamente realizado em cena pelos bailarinos. O palco, tomado por fumaça, pela qual os bailarinos aparecem e desaparecem, misturado à trilha sonora sintetizada de sons, instrumentos e vozes, é recortado por uma iluminação que marca espaços e delimita territórios, unicamente para serem rasgados e invadidos pela rebelião dançada. Não só as escolhas da obra, mas também a interpretação carregam o sucesso de sua realização cênica.

Os processos delicados de curadoria de programas mistos são assunto de muito debate. Frequentemente, companhias de repertório montam programas que tem, unicamente, a pretenção de ocupar o elenco disponível, dentro do tempo disponível, com uma variedade aceitável de obras. Aqui, o processo é bem diferente. Primeiramente, o Groupe Grenade não está inscrito nessa esfera de produção de dança. Só o fato de terem um ano inteiro para a montagem desse programa já os coloca em um grau outro daquilo que habitualmente é fazível na dança atual. Mais ainda, aqui não foi proposto apenas um programa misto, mas um espetáculo inteiro em si. Coreografado detalhadamente, incluindo seus momentos de intervenção técnica, alterações de cenário, troca do linóleo. Diversas pequenas coreografias foram criadas entre as obras principais, e elas, em si, são também de interesse, discutindo diversas das percepções que os bailarinos têm dos coreógrafos que eles estão dançando e dos diversos estilos das obras que compõem o todo do espetáculo.

Sobretudo, o projeto faz pensar nos trabalhos feitos em outras tantas formas de ensino e profissionalização da Dança. Quando tanta ênfase se dá à formação e à técnica, e o artístico frequentemente é colocado de lado, restrito àqueles “espetáculos de final de ano”, que – salvo algumas exceções – são tão pouco artísticos quanto criativos ou interessantes, é difícil não se surpreender que a formação do artista da dança seja muito mais uma treinamento do que uma formação realmente artística.

Contrariando essa onda, o trabalho que Josette Baïz desenvolve com o Groupe Grenade tem um foco que, a partir de seus resultados, se mostra bem mais acertado. Mantendo a exigência da técnica e do treinamento e preparação adequada do bailarino, mas produzindo obras de arte, colocando os bailarinos em contato com coreógrafos e com alguns esquemas de produção da dança, a proposta se mostra uma mistura entre o formativo, o profissionalizante e o artístico. Com mais de duas décadas de experiência e resultados – agora, mais uma vez, com Guests – comprovados, as expectativas para a continuidade do projeto são unicamente positivas, e intensamente convidativas.

 

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