Críticas

Petrushka Extended | Granhøj Dans

O Petrushka de 1911 serve de inspiração para Palle Granhøj numa criação que estende as interpretações dessa obra para os dias de hoje, transportando a visão que ela então nos dava dos bastidores de um teatro de marionetes, para os bastidores atuais de uma criação em dança contemporânea. Intrigante e inovador, o trabalho da companhia dinamarquesa Granhøj Dans é criticado no Da Quarta Parede.

A companhia dinamarquesa Granhøj Dans esteve em curta temporada no teatro do SESC Vila Mariana com o espetáculo Petrushka Revisited, que coloca em cena uma situação de uma encenação dentro de outra encenação, na qual presenciamos um processo de montagem de uma versão do Petrushka, a partir da trilha sonora original de Stravisnky, e com grande carga de referência à obra que Michel Fokine coreografou para os Ballets Russes de Diaghilev em 1911.

Uma das produções mais populares dos Ballets Russes, o Petrushka de Fokine seguia os princípios de arte-total que buscava Diaghilev, unindo criação musical, coreográfica e visual para a composição de um todo que discutisse não só seu tema, mas também as formas de se fazer dança daquele momento. A história original coloca o público dentro de uma feira de rua, um carnaval russo, com suas diversas atrações. Dentre as atrações, se destaca um teatro de marionetes, trazidas à vida por um mágico.

Essas marionetes são Petrushka, A Bailarina e O Mouro, e elas nos são mostradas tanto em seu papel de atrações do carnaval, como dentro do que seria sua vida privada, situação em que podemos descobrir a revolta de Petrushka contra o Mágico, e seu amor pela Bailarina, que o rejeita para ficar com o Mouro, que, por sua vez, acaba ferindo mortalmente Petrushka em uma batalha. Para acalmar o público do carnaval, desesperado com a morte, O Mágico lembra a todos que Petrushka é apenas um fantoche, mas ao cair da noite, o seu fantasma aparece, perseguindo o Mágico, e fazendo o público se questionar acerca do que é real e do que é fantasia nessa história.

O primeiro intérprete de Petrushka foi o bailarino Vaslav Nijinsky, e frequentemente associações entre ele e a obra foram estabelecidas, ainda que ela não seja uma criação declaradamente relacionada a Nijinsky — o primeiro projeto da trilha de Petrushka foi proposto por Stravinsky como uma obra de concerto, não um ballet, e foi desenvolvido enquanto ele estava trabalhando na que seria sua segunda criação para os Ballets Russes, A Sagração da Primavera (1913), na sequência da obra fundadora da companhia, O Pássaro de Fogo (1910).

Foi só mais tarde que os sentimentos expressos por Petrushka ao ser deixado de lado, a rejeição e o abandono pelo Mágico, em paralelo a seu talento e expressividade artísticas foram comparados à biografia de Nijinsky e ao que o bailarino relata em seus diários sobre o sentimento de rejeição que sentia da parte de Diaghilev.

Refazer Petrushka é uma tarefa complexa. Revisitá-lo, talvez ainda mais. A escolha do coreógrafo Palle Granhøj se concentra não apenas em apresentar uma nova interpretação das propostas originais, mas em montar uma cena que retrata o momento de criação e de desenvolvimento de uma nova proposta artística para Petrushka.

Numa cena iluminada por luzes frias, nos vemos em uma sala de ensaio. Esse lugar é construído também verbalmente, por um anúncio que avisa que estamos a pouco tempo da estreia de um novo trabalho, e vendo um diretor que acredita ter o elenco perfeito , enquanto ele trabalha com esses indivíduos. Um alerta especial se dirige às dificuldades comunicativas que vão preencher a cena construída: ainda que haja muita conversa, nós não entenderemos o que é dito; mas tampouco o entendem os bailarinos em cena, posto que cada um fala sua língua nativa — húngaro, grego, polonês, russo…

Fora as luzes, e um piano no canto do palco, a cena é inteira preta. É nesse espaço que entra uma musicista e um bailarino, este, interpretando o papel do coreógrafo. Eles têm uma interação, mas que parece profundamente dependente do texto. Vemos um envolvimento afetivo/ sexual, mas não sabemos ao certo do que se trata. Aos poucos, outros três bailarinos vão se juntar ao grupo, e repetir trechos de ensaios e correções do coreógrafo, enquanto a musicista executa a trilha sonora de Stravinsky com uma certa liberdade de adaptação.

A coreografia é desenvolvida a partir da Técnica da Obstruçãode Palle Granhøj, que se propõe a forçar os bailarinos ao desenvolvimento de novas estruturas de movimentação e combinações de movimentos, através da alteração e restrição, por meios físicos, do movimento livre. Desses obstáculos, pouca coisa é levada à cena. Temos o uso de máscaras, mas elas na verdade não limitam nem obstruem o movimento — à exceção de uma delas, que possui faixas elásticas, e cria a possibilidade de controle e manipulação do bailarino que interpreta Petrushka pelo bailarino que interpreta o Mouro.

Porém, na movimentação vigorosa do Petrushka de Granhøj, é possível vislumbrar um pouco do trabalho com essa técnica, que cria formas de movimentação repletas de alterações bruscas, e se assemelham a uma mistura de dança e de parkour— técnica esportiva de deslocamento entre obstáculos desenvolvida nos anos 1990 pelo francês David Belle. O resultado remete profundamente a estruturas já propostas por Nijinsky, que até destoavam um pouco do trabalho de Fokine, e que se tornaram sua marca enquanto coreógrafo, posteriormente perpetuadas por sua irmã e partner, a bailarina e coreógrafa Bronislava Nijinska. Aqui, observam-se as rupturas com o movimento do ballet clássico, a construção de repetições sistemáticas, uma preferência pelo peso e pela gravidade, que puxam de volta ao solo mesmo os maiores saltos, e um gosto pela insistência, pela repetição quase exaustiva e pela correção obsessiva — que foram pontuadas como características de Nijinsky e que aqui aparecem distribuídas entre a personagem do Coreógrafo e a figura de Petrushka.

Nesse contexto se reconstroem as relações com o Petrushka de 1911. Como somos roubados do enredo, só podemos associar as personagens a partir de um conhecimento prévio da obra que inspira essa nova versão. Mas, cientes da obra original e, mais que isso, de seus contextos, é impossível não tecer uma grande trama de relações.

Dentre essas relações, a que parece mais significativa é que o diálogo aqui não se estabelece exatamente com a obra de 1911, mas sim com as percepções que ela provocou em seu momento e continua provocando até hoje. Se Petrushka se transformou em um símbolo de Nijinsky, ilustrativo das relações de poder e controle do bailarino com seu coreógrafo e diretor, aqui temos esse mesmo tipo de relação de poder colocada em cena, e acentuada pela transformação do personagem do Mágico em coreógrafo.

No libretto de Stravinsky e Benois, vemos Petrushka boneco ganhando movimento a partir do poder do Mágico. Mais tarde, passamos a nos questionar se não se trata exatamente do contrário: ele seria vivo, e teria seus movimentos retirados pelo mágico, para que só os usasse enquanto atração lucrativa. Essa percepção aqui é recolocada na cena. O Mágico/Coreógrafo está propondo movimentos, formas de executá-los, intenções, e assim por diante. Essas proposições chegam aos bailarinos apenas parcialmente, posto que, conforme fomos avisados pelo anúncio do início, eles não se entendem completamente. Mas isso não impede as demonstrações e o uso do corpo para a sugestão e a criação de respostas.

A relação entre um coreógrafo e seus bailarinos, tão cara à dança contemporânea, aqui é colocada em jogo. Quem é criador e quem é criatura? E quando do desejo de um coreógrafo se transporta para seus bailarinos? Sobre essa questão, uma cena interessante com as máscaras, coloca o Mágico/ Coreógrafo frente a seus bailarinos mascarados, com suas identidades apagadas. Essas criaturas mascaradas meio que o perseguem, meio que o assombram, meio que o veneram. E ele próprio se vê encantado, enamorado das máscaras que cria para seus intérpretes.

Aqui, a reflexão da obra de 1911 que nos deixa com a dúvida acerca de quem é o responsável pela morte de Petrushka, se seria o Mouro ou o Mágico, é replicada para a figura do coreógrafo, e uma relação que pode ser entendida como o apagamento do intérprete pela máscara. Nesse sentido o título da obra, Petrushka Extended, parece especialmente inteligente, por apontar, não para o Revisitado, mas para o Estendido: Petrushka arrastado de 1911 até os dias de hoje, e colocado em cena não como obra, mas como processo, para nos revelar, tal qual o Petrushka de Fokine mostrava os bastidores do teatro de marionetes, os bastidores da criação de dança contemporânea.