O Grito / Uma Solidão Ruidosa | La Compagnie des Réformances
Entre a metáfora e a ilustração, Afshin Ghaffarian provoca, mas nem sempre se faz entender. Sua passagem pelo ‘Cortina Fechada’ do SESC Vila Mariana apresentou ‘O Grito’ e ‘Uma Solidão Ruidosa’, criadas em 2010 e 2013 pelo bailarino iraniano, e agora criticadas no Da Quarta Parede.
Dentro do projeto Cortina Fechada, que discute questões de censura na arte, o SESC Vila Mariana recebeu para a apresentação de dois solos o bailarino iraniano Afshin Ghaffarian — reconhecido pelo filme O Dançarino do Deserto, que conta a fundação de uma companhia de dança por Afshin, atividade proibida em seu país natal. Atualmente, o bailarino é refugiado na França, e já foi residente do CND – Centre National de la Danse parisiense, onde desenvolveu parte das pesquisas que levaram à fundação de sua companhia, também sediada na frança, a Compagnie des Réformances, e à criação de O Grito (2010), uma das duas obras apresentadas em sua passagem por São Paulo.
Em O Grito, a plateia entra na sala para encontrar no palco uma cena ja montada: uma espécie de picadeiro — um círculo de terra contornado por uma corda — e, dentro desse espaço, três baldes também suspensos por cordas. Carregando um microfone num pedestal, Afshin entra em cena, sem invadir o círculo. Microfone testado, ele tira do bolso um papel e, quando esperamos um discurso, nada sai de sua boca, além de um gemido falho: impossibilidade comunicativa, que se arrastará pela obra.
Num procedimento quase ritual, o bailarino se despe, e adentra o círculo. Recolhido ao fundo da cena, ele geme: um grito sufocado, aos poucos escapando de sua garganta, dentro desse território místico, de interação com os elementos. Ele puxa uma das cordas e derruba o conteúdo de um dos baldes — água — sobre si, e dança agitando a terra desse picadeiro. Sua dança é a de um corpo que se dobra e se desdobra sobre si mesmo, retorcendo, contraindo.
Misturadas com a trilha sonora, ouvimos gravações radialistas de guerra, e o corpo é colocado num campo de batalha, onde está sozinho, enfrentando os elementos. Caminhadas estilizadas retratam a busca por um lugar, e, ao longo do trabalho, tudo o que ele encontra é a si mesmo, e os elementos, como a água em um balde, e as velas acesas que pingam cera sobre o bailarino em outro: o contato com os elementos é almejado, é necessário, mas é doloroso e sempre violento.
Do balde central cai um pó vermelho, que ilumina a cena como se a cobrisse de sangue, e sacraliza o tom cerimonial da obra, que, mais ao final, será levada à transfiguração, à transmutação, quando se abre, ao fundo da cena, uma passagem, na qual vemos véus claros balançando com o vento. Ele sai desse picadeiro, novamente se veste, e, carregando o microfone, declama, em português, “Dois e Dois São Quatro” de Ferreira Gullar. Nessa ladainha, ele invade o picadeiro, arrastando com os pés a corda que delimita o espaço, assim destruindo o círculo, e atravessando o espaço sem precisar, de fato, cruzá-lo: levando a corda, ele chega de uma ponta à outra do círculo, sem nele entrar. E assim consegue chegar aos véus, onde dança alegre, antes de sair de cena.
O programa nos conta que esse ritual iniciático expressa um nascimento original do homem, num tempo imemorial. No contexto do projeto, e da história de vida do bailarino, a leitura que se constrói é uma outra: de um encontro do indivíduo com si mesmo e suas verdades, através da adversidade constante. Não parece haver um nascimento, um princípio absoluto, mas um recomeço, que se obtém com muito esforço e enorme pesar. Fosse esse o princípio do mundo, mesmo a alegria do último instante não serviria para mascarar o processo penoso desse parto.
Mais que isso, a escolha do poema, que foi publicado no início da ditadura militar brasileira, e por um autor que diversas vezes se manifestou contra o governo repressor, carrega para essa interpretação mais marcada pelo tempo: “sei que dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena / mesmo que o pão seja caro / e a liberdade pequena”. Nesse espaço de entendimento e reflexão, o mítico pode servir de metáfora, mas não exatamente de ilustração: aquilo para que ele aponta é algo — necessariamente — maior do que si mesmo.
A dinâmica de metáfora e de ilustração também é um ponto de debate e percepção da segunda obra apresentada dentro do evento: Uma Solidão Ruidosa, que Afshin criou em 2013. Livremente adaptada — ou mesmo levemente inspirada — do livro homônimo de Bohumil Hrabal de 1976, Solidãodesenvolve sobre a censura. No livro, a história retratada é a de um personagem responsável por destruir os livros censurados pela então URSS. Se o programa nos anuncia que na dança o intérprete empacotará e destruirá esses livros, até encontrar o último livro, surpreende que encontremos apenas um livro em cena, com diversas folhas de jornal espalhadas pelo palco, e — estranhamente — uma pipoqueira.
É possível colocar leituras específicas em certas passagens da obra. Por exemplo, quando o bailarino brinca de amarelinha, pisando numa estrutura inicialmente escondida sob os jornais, mas sem de fato pular pelos quadrados do jogo, apenas pisando em suas linhas, podemos forçar uma leitura de um questionamento: como escapar das regras do jogo? Porém, a dificuldade é que esse jogo não está claro, porque a coreografia não dá conta de apresentar esse processo de destruição dos livros, que poderia, sim, ser trabalhado a partir do ponto de vista de alguém em um trabalho que lhe desagrada — mas fazer essa leitura seria forçar a interpretação a partir daquilo que está escrito, e não a partir daquilo a que assistimos.
Entre provocativo e desvairado, Afshin come pipocas, as joga para o alto e pelo chão, agarra e come folhas de jornal, que ele pica e pisoteia, numa cena que se estende longamente por 70 minutos, com pouquíssimos acréscimos de conteúdos e estruturas para além do convulsivo. Há uma clara insatisfação do intérprete com a situação — isso é bem retratado em ‘Solidão’ — a dificuldade é que a situação, em si, não é realmente apresentada ou representada, e ficamos constantemente à espera de algo que junte as pontas e esclareça o sentido.
Enquanto investigação expressionista sobre o tema da insatisfação, do tédio do trabalho repetitivo, a obra funcionaria. Mas essa não parece ser sua proposta, e ela acaba refém de uma estrutura elaborada, mas pouco funcional, que tem uma carga afetiva, mas que não tem uma expressão proposital compreensível. É nesse sentido que se recupera a — problemática da — dinâmica de metáfora e ilustração: enquanto ilustração, ou adaptação de um enredo de origem, a obra falha; mas enquanto metáfora criada a partir de uma sensação pessoal tida da leitura do livro, a obra — em termos — pode funcionar. “Em termos”, porque é preciso questionar a validade dessa leitura pessoal, sua relevância e, sobretudo, sua compreensão — para o público. E ai, esse funcionamento depende não apenas de uma boa quantidade de informação colateral, sobre a obra, sobre o bailarino, sobre o entendimento que ele teve, mas, também, das estruturas de apresentação que, tal qual as pipocas que explodem da pipoqueira, despertam bastante curiosidade, mas trabalham pouco o domínio da significação: o risco é o de nos perdermos no meio desse cenário, e não acharmos nem saída, nem compreensão.