Up & Down | Eifman Ballet
Baseado no romance Suave é a Noite, de Francis Scott Fitzgerald, Up & Down, a mais recente coreografia de Boris Eifman para sua companhia, o Eifman Ballet, reconstrói a atmosfera de liberdade e decadência da Era do Jazz estadunidense.
Criado em 1977, o Eifman Ballet surgiu com uma proposta pouco difundida na Rússia: a criação de uma companhia moderna e de coreógrafo. A ideia de Eifman foi, desde o princípio de seus trabalhos, a de contar histórias através da dança. Nesse ponto, seu estilo, que o próprio prega como um “ballet-teatro psicológico moderno”, se associa tanto à ideia de inovação e de modernidade, quanto à ideia de continuidade da tradição.
A companhia, subvencionada pelo governo municipal de São Petesburgo, teve seu maior reconhecimento a partir de 1997, quando obras do coreógrafo, como Red Giselle – baseada na vida da bailarina russa Olga Spessivtseva – e Russian Hamlet – que trata da vida do Czar Paul I – foram apresentadas no teatro do Bolshoi de Moscou, um dos mais importantes dos circuitos das artes da cena na Rússia.
Como contador de histórias, as inspirações de Eifman vêm de diversas fontes. Particularmente, o coreógrafo mostra uma predileção por biografias – sejam elas reais ou de personagens fictícias. E é a partir de uma história de vida fictícia que surge a proposta de Up & Down.
Eifman é insistente em dizer que nunca faz adaptações de obras literárias, que as usa (ainda que frequentemente), mas apenas como inspiração para a criação de um espetáculo coreográfico. Porém, em Up & Down ,como em muitos outros de seus trabalhos, o aspecto narrativo das obras inspiradoras fica evidente. O coreógrafo constrói, então, estruturas que se assemelham profundamente às do teatro musical, com a única ressalva de serem mudas. Fossem cantadas, as cenas poderiam ser facilmente enumeradas, intituladas e identificadas caso a caso com sua referência de origem. Assim, ainda que ele não adapte o livro (ou, pelo menos, não diga fazê-lo), a proposta de adaptação do enredo é minuciosa.
Sem as falas, toda a ação e os conteúdos das cenas são restritos à movimentação, sendo levados, em grande parte do espetáculo, pela pantomima e pela atuação dos intérpretes, e não apenas pela dança. A visão de diretor de Eifman consegue mesclar bem os diversos elementos visuais e sonoros na construção de um espetáculo exuberante visualmente, que reflete o tempo sobre o qual fala.
A história mostra um psiquiatra que passa a se dedicar exclusivamente a uma paciente, com quem se casa, abandonando sua vida profissional por uma vida de prazeres e festas, que a um ponto o afastam do que seria seu talento, e a outro ajudam sua esposa a esquecer seus traumas. Todo o luxo da vida frívola que o casal leva deixa de ser relevante quando o psiquiatra se encanta com uma estrela do cinema mudo, enquanto sua esposa decide continuar a vida com um dandy mundano. Quando nada se firma entre ele a atriz, o psiquiatra se vê sozinho e desesperado, e enlouquece, retornando a sua clínica, mas como paciente.
A Era do Jazz é frequentemente vista como uma grande festa antes dos momentos difíceis trazidos pela quebra da bolsa de 1929. Paralelamente, a história do psiquiatra também se constrói como uma grande festa antes que tudo dê errado e ele se perca. A reflexão que interessa ao coreógrafo permanece na esfera do psicológico e do entendimento do mundo pelo indivíduo, seus limites e suas batalhas pessoais.
A trilha sonora, com músicas de Berg e Schubert e arranjos de George Gershwin, mescla a música clássica ao jazz para criar ambientações que se alternam. Se inicialmente somos envolvidos pelo clássico, e o jazz aparece como um momento de fuga (alimentado por um grande destacamento dos 50 bailarinos do corpo de baile da companhia, que a cada nova entrada aparecem com novos e mais impactantes figurinos), ao longo da obra, o jazz passa a tomar conta da cena, envolvendo personagens e platéia na atmosfera decadente dos anos 1920.
Essa transição, também muito trabalhada na atuação dos bailarinos, é menos perceptível na coreografia. A formação clássica da companhia, mesmo permitindo grandes proezas técnicas, acaba marcando acentos muito diferentes dos estilos de dança ligados ao jazz daquela época, que fica, em cena, com uma sutil aparência de desajuste. A dificuldade nesse ponto, nessa obra em específico, é a relevância que o jazz tem para a história contada, e seu papel frente às personagens e suas vidas.
Enquanto essa transição é muito notável em música e em interpretação, ela fica mais borrada na coreografia. A balança, aqui, pende para o lado do espetáculo, mais que para o lado da dança, e o longo e produtivo trabalho de Eifman enquanto diretor, se sobressai ao seu trabalho de coreógrafo. No entanto, curiosamente, Eifman não assina a obra enquanto diretor, apenas como coreógrafo e como autor da “ideia original”.
A noção de uma balança é interessante pra se pensar a própria obra. Desde seu título, Up & Down, estamos preparados para ver um jogo de alternâncias. Entre o são e o louco; entre o universo do médico e o da esposa; entre a música clássica e o jazz. Up & Down não tem uma competição. Indiferentemente, o médico começa bem e termina mal, enquanto sua esposa começa a história mal e termina bem. Como o movimento sonoro do próprio jazz, a história é contada em cima dos pratos da balança, à espera de uma mão um pouco mais pesada que a leve pra um lado ou para o outro. Inspirada por Fitzgerald, a mão de Eifman equilibra os pratos até o último instante. E ai, ele lança a própria balança para o alto (ou, melhor, para o chão), e cria mais uma de suas figuras psicológicas de impacto. Como alegoria, o retrato do psiquiatra perdido em si mesmo insiste em lembrar o retrato de uma sociedade à beira de uma de suas maiores crises econômicas, aproveitando seus últimos instantes no topo como se nada a colocasse pra baixo. Mas ai vem uma mão e a balança pende…