Críticas

A Cadeirinha e Eu / A Morte do Cisne | Cia Dita (Bienal de Dança do Ceará)

No Teatro José de Alencar, a XI Bienal Internacional de Dança do Ceará abre as atividades das comemorações de seus 20 anos com a Cia Dita, acompanhada da São Paulo Companhia de Dança. Entre os discursos do cerimonial, que destacaram a relevância da Bienal para o Ceará e sua dança, uma programação gratuita de mais de 80 atrações, em 6 cidades e 10 dias, afirma o papel formativo desse evento, pensado para os artistas da dança, mas, sobretudo, para o público de dança.

Numa ocasião que parece refletir sobre o histórico da Bienal, o destaque em cena fica para as figuras daqui. Fauller abre a noite com o trabalho “A Cadeirinha e Eu”, produzido pela Bienal de 2011, como uma releitura da obra de 1994 da coreógrafa cearense Silvia Moura. Se na obra de Moura o que transparece nessa cena de estrutura simples — um solo com uma cadeirinha — é uma discussão e ilustração das fases da vida de uma mulher, aqui, o caminho parece mergulhar na memória.

Memória afetiva, que o bailarino e coreógrafo (re-)constrói a partir de seu contato com a obra inspiradora. Nela não são mantidos os trabalhos diretos com o tema-inspiração. Enquanto Moura retraça o percurso da vida, desde a infância, com a cadeirinha como objeto lúdico, brinquedo com o qual interage, e que já começa na mão da bailarina, a cadeirinha de Fauller se apresenta mais distante. Com ele ao fundo da cena, a cadeirinha na beirada do palco, e a trilha sonora tomada pelo barulho das ondas, vemos o corpo do intérprete se desdobrando em direção a ela.

Da infância, fica só um princípio de engatinhar, num avançar constante. Mas Fauller não recria um corpo infantilizado, ou inocente. Contrariamente, ele mostra um trabalho técnico maduro e de precisão, usando suas articulações para essa caminhada, que parece quebrar como o mar bravo, com mãos, pés, braços, pernas e a cabeça que se movem como se fossem se descolar do tronco.

Retratar um princípio marítimo em coreografia, especialmente quanto ela é tão precisa, é sempre uma dificuldade. O desafio é transformar o acaso das ondas que ouvimos na trilha em coreografia, e seu resultado tem sucesso. Além da notável caminhada, a obra inclui outras cenas, ora em silêncio, ora com uma trilha sonora de piano. Nelas, o bailarino se articula e posiciona em relação à cadeira: ao seu lado, e depois em uma diagonal.

Mais que inspiração, a cadeirinha é um destino. Um lugar a se chegar. E esse lugar nos parece um pouco mais claro ao final da obra, com o bailarino em pé ao lado dela e com a mão esticada, como se pegasse na mão de alguém sentado na cadeirinha. A imagem se propaga em um video projetado, que reproduz essa cena final, mas agora em novo espaço. Frente as ondas, de mãos dadas com Silvia Moura sentada em sua cadeirinha, o bailarino olhando o mar encontra o lugar onde queria chegar.

Nessa abertura, a Cia Dita é entremeada pelas apresentações de “14’20”” (Jiri Kylian) e “Pássaro de Fogo”  (Marco Goecke), duos que a São Paulo Companhia de Dança estreou mais cedo esse ano. Mas o grande destaque da noite é realmente o “A Morte do Cisne” que Fauller dirigiu para Wilemara Barros.

A coreografia original de 1905, criada por Fokine para Ana Pavlova é uma daquelas peças em que há grande dificuldade de se mexer. Ela é um ícone, um marco na história da dança, e um evento de interpretação para qualquer bailarina. Sua proposta é simples: um cisne se aproximando da morte, canta sua última canção. Sem excessos técnicos, e contra a tendência ao virtuosismo que dominava a dança russa no momento, a obra quer mostrar que a dança se faz na interpretação e não na exibição técnica.

É justo, então, refazê-la com essa grande intérprete daqui. Num vídeo introdutório, Fauller conta que há muito insiste que Wilemara dance a peça. Reconhecida por seu trabalho como bailarina, dentro da técnica clássica, que ela remodela para seu corpo, de forma a valorizar a performance mais do que o exercício, aqui parece haver um bom casamento.

Mas o que interessa especialmente é a modificação, sutil, mas que faz absolutamente toda a diferença nesse cisne. O cisne de Fokine e Pavlova é melancólico, seu corpo tem espasmos que acentuam o seu final calmo, silencioso, sua morte já aceita. O cisne de Fauller e Wilemara, não.

Sua dança é uma dança de ímpeto. Não há nenhum aceite, nem mesmo uma imagem de fim da vida. Esse cisne resiste. Ele não canta baixinho seu adeus, mas grita lembrando a todos que ainda está aqui. Para isso, não foi preciso mudar a coreografia, unicamente a qualidade do movimento, nos mostrando um corpo que vibra, e que pode fraquejar, mas que continua e insiste.

Encaixe perfeito para momento em que vivemos, e bem dosado com os discursos que abrem essa Bienal em meio ao temor da censura, da caretice, dos riscos aos quais a arte vem sendo submetida. Em meio a esse panorama, às vezes assustador, como o cisne de Wilemara, resistimos. E, num evento como esse, falamos em vozes altas: um grito de vida, não um canto de despedida.

 

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