Críticas

por + vir | Companhia de Danças de Diadema

Em temporada gratuita na Caixa Cultural, a Cia de Danças de Diadema reapresenta POR+VIR, obra da comemoração de seus 20 anos, que conta com coreografias de nove criadores — Henrique Rodovalho, Luis Arrieta, Mário Nascimento, Sandro Borelli, Fernando Machado, Cláudia Palma, Pedro Costa, Sérgio Rocha, além da própria diretora da companhia, Ana Bottosso, que costura e alinhava esse todo: um espetáculo de reflexão e reverência, pelo que a companhia já fez e ainda tem a fazer.

A comemoração dos 20 anos da Companhia de Danças de Diadema, se deu em 2015 com a criação de por+vir, espetáculo de Ana Bottosso que contou com coreografias de oito coreógrafos, além da própria diretora da companhia, num momento de reflexão que discute aquilo que já foi feito, e aquilo que a companhia ainda virá a fazer. Os coreógrafos convidados já haviam todos passado anteriormente pela companhia, criando, nessa nova ocasião, peças então inéditas junto do elenco atual. O resultado é um espetáculo de múltiplas referências, mas que não se perde, com uma costura e alinhavo bem feitos pela diretora, e por uma equipe técnica que sustenta a obra, junto das criações dos coreógrafos.

De volta à capital, o espetáculo em cartaz na Caixa Cultural começa no hall, com a coreografia-instalação Nós de Nós, de Cláudia Palma. Silencioso preâmbulo, nos mostra os bailarinos um a um, sozinhos, separados, e depois se aglomerando, explorando as possíveis interações entre os corpos, que se espremem e se fundem, quase como cristais, ou rochas maleáveis, com os olhos vidrados e os rostos vazios de expressões. Colapsando, esse aglomerado, ou nó, fica ali no chão, no meio da platéia à espera de entrar na sala, para depois começar mais uma vez a se desamarrar, dissolver, e, um a um, os bailarinos vão se soltando, voltando ao espaço separado. Boa reflexão para uma companhia contemporânea, o exercício é o de tornar-se grupo e o de ser indivíduo, não a partir das características de cada um, mas a partir daquilo que faz o grupo continuar: o movimento, a dança.

Reflexão sutil, marca um tom sóbrio, que não predominará pelo espetáculo, mas que se mostra vez ou outra, sobretudo nas obras de sua primeira metade. Se o programa nos fala sobre o olhar acolher, sobre o aconchego do corpo, o que se demonstra é menos macio e quentinho, é algo da aspereza do contato forçado, e da maleabilidade insistente do corpo, que resiste, se adaptando, ora se transformando em grupo, ora se separando em indivíduo. Há ai um tema, uma proposta, uma possibilidade de discussão, mas o exercício é primário — um bom primeiro passo para a criação de algo para o público, mas, como está apresentado, ainda algo que parece servir ao grupo mais que às pessoas do lado de cá da platéia, mesmo que os bailarinos estejam, nesse momento, em nosso meio.

Esse é um risco da dramaturgia de por+vir. Nove criadores, para 70 minutos de obra é uma estrutura que grita constantemente por um equilíbrio muito complexo e muito delicado, que depende de múltiplos fatores. Felizmente, a mão de Ana Bottosso, que junta esses pedaços todos, é forte nas costuras. Bakú, sua contribuição para o programa, não é uma cena, mas um conjunto de intervenções que aparecem entre algumas das cenas dos outros coreógrafos.

A estratégia funciona tanto em seu sentido prático quanto em seu sentido estético. A partir da imagem de uma entidade oriental que espanta pesadelos, Bottosso coloca em cena um processo micro-narrativo que se constrói em pequenas vinhetas. Nelas, o que se destaca é a qualidade dos movimentos das intérpretes, que incluem a própria coreógrafa e criadora da companhia, numa alusão à noite, ao claro e escuro, ao pesadelo e ao sonho. Esse processo se dá com uma homenagem a Ivonice Satie, que de fato transparece em cena e nos corpos, entre um semblante sério e um corpo ágil, relembrando uma das nossas grandes bailarinas, coreógrafas e diretoras.

Porém, como as múltiplas vinhetas vão aparecendo entre algumas das coreografias, seus maiores momentos apenas chegam realmente mais para o final do espetáculo, sobretudo numa cena com as duas bailarinas sentadas em banquetas, de costas para a platéia, e o duo final em que a a criatura mítica se materializa completamente, sendo enfrentada por Ana com um leque. Até chegarmos ali, temos o começo um pouco mais parado, que vem da obra de Cláudia Palma, e também da criação coletiva de Pedro Costa com o elenco da companhia, Caminhos Traçados, que, fiel a seu título, é uma obra direcional.

Em caminhos traçados, os bailarinos estão com os membros estendidos tentando constantemente alcançar algo que não sabemos o que seja, enquanto demarcam o espaço, desenham pelo chão e pelo ar, criando, com o movimento, um mapa que não se registra senão em nossa memória. O conjunto se desdobra em múltiplos duos de queda, de levantamento, apoio e impulso, que vão ganhando dinamismo e parecem aludir a certas referências corporais que veremos em outras das coreografias.

Por exemplo, em .entre pontos., ponto alto da primeira metade do espetáculo, de Fernando Machado, que leva a sério e a cabo o título do conto “A tribo com os olhos para o céu” de Ítalo Calvino, que serve de inspiração para a criação da coreografia. Aqui, finalmente, parecemos ter algum indício do direcionamento dos olhares, que até então parecia causar estranheza, e nesse momento começa a ganhar sentido.

Os bailarinos partem de desdobramentos corporais meditativos e dessa busca de algo no céu para desenvolver dinâmicas do sagrado em uma dança que lembra um ritual. Não se trata de um sacrifício, mas de uma experiência talvez religiosa, e sempre celebrativa, ainda que sombria. Há algo que se volta para o chão, mas que dele tenta escapar, sendo concretizado em múltiplas formações, sobretudo em uma das imagens que ficam conosco do espetáculo, com o grupo dos bailarinos deitados e passando uma bailarina por cima deles, apoiada em suas mãos.

Essa reflexão sobre a vida, suas condições, e sobre as possibilidades individuais e coletivas chega à beira de um colapso na coreografia seguinte, Gárgulas, de Sandro Borelli, que coloca em cena dois corpos que se refletem, em contorcidas posições de estátuas-vivas. Para discutir a dilaceração física e moral, essas duas gárgulas sublimam o tempo: seu tempo não é o tempo dos homens, o que se marca pela contínua lentidão na movimentação, mas sempre progressiva, sempre sem parar. Nessa estrutura, as bailarinas atravessam e contornam a cena, em caminhos que não exatamente levam a algum lugar, mas que resistem e que insistem, demarcando algo de mórbido, mas inevitável, como o tempo e a morte, sempre iminente.

“Esse Samba É Meu”, de Sérgio Rocha, marca uma mudança no andamento da obra, que começa a se apressar. A cena é uma procissão de carnaval de rua, em que os bailarinos percussionam nas mãos e nos pés, sambando e se divertindo e tratando, bem de leve, de suas experiências pessoais com essa dança. O programa do espetáculo nos diz que a criação surge a partir dos relatos dos bailarinos, questionados com a pergunta “Quando e como foi o seu primeiro contato com o Samba?”, mas, de fato, o que percebemos é essa aura, até contagiante, de festa, que o samba tem.

O que sabemos a mais sobre os bailarinos e suas experiências? Nada. Mas esse é o ponto. O coreógrafo se propõe discutir algo do que defende como uma universalidade do samba na memória do brasileiro, e por isso a obra funciona nos colocando nesse espaço que força a lembrança de alguns momentos pessoais. Ainda que não nos diga nada particular sobre os outros, tem o curioso efeito de nos dizer algo sobre nós mesmos. Estratégia que precisa ser reconhecida e admirada.

Essa discussão do eu e do outro continua em entremeios, de Mário Nascimento, que coloca no palco cinco bailarinos de botas, numa estrutura sonora que mistura o sintético ao natural, e numa proposta coreográfica que discute o posicionamento e o deslocamento. Coreografia de complexa execução, coloca os bailarinos numa diagonal de luz, variando entre o repouso e a hiper fisicalidade, com a realização de stunts virtuosos que compõem com o espetáculo no sentido de nos mostrar, mais que qualquer outra das coreografias de por+vir, a qualidade técnica desse elenco, que merece ser declarada e reafirmada.

Ainda que não se trate de algo inovador, ou especialmente criativo, o que essa coreografia tem de potência é a exposição, fundamental numa obra como essa, que é uma celebração de uma carreira respeitável, e uma afirmação da relevância atual desse grupo. Poderia-se torcer o nariz para a proposição expositiva, mas não quando ela faz parte desse todo. Entre nove criações, uma que mostra o quanto eles conseguem fazer não é algo de exibição gratuita, mas algo de afirmatividade e de qualificação, revelando uma capacidade e uma potência, e deixando a curiosidade para a continuidade da companhia. É especialmente interessante repensar esse trecho agora, depois da companhia já ter estreado mais uma obra, Eu Por Detrás de Mim (que já foi criticada aqui), e que também é, em si, um testamento do apuro técnico desse elenco, que tem sido continuamente trabalhado pela direção, e agora pode mostrar seu bom nível.

A obra seguinte é 1+um, de Henrique Rodovalho, e, como costuma acontecer em trabalhos do coreógrafo goiano, no primeiro gesto da obra já nos sentimos em sua companhia. Autor de um universo específico, especialmente dedicado a discutir relações interpessoais, aqui Rodovalho nos mostra um duo em que novamente essas relações nos provocam dúvida: elas funcionam ou não? são relações bem sucedidas ou não? Os amores difíceis não são tema novo para Rodovalho, e a coreografia criada especialmente para a Cia de Diadema carrega profundas marcas de outras de suas obras.

Sua beleza é constante, mas sua execução é trabalhosa. Não porque demande uma capacidade para grandes truques, mas porque a movimentação do criador é de uma qualidade única e específica. Seu trabalho com a segmentação do corpo vai na contramão do que a maior parte dos bailarinos contemporâneos tem como impulso natural de ação e como desenvolvimento e treino prévios, e, aqui, ainda que os bailarinos sejam lindos em cena, o entendimento que eles demonstram da execução dessa movimentação segmentada ainda é rudimentar. Os gestos e as poses de Rodovalho estão lá, mas elas se perdem sutilmente entre as informações já presentes nos corpos dos bailarinos, e ai, acabamos tendo contato com seu trabalho como algo enfraquecido, ou diluído.

Não há diluição nenhuma na obra que encerra por+vir, Novena, de Luis Arrieta. A coreografia é simples e pungente, e, exatamente por isso, eficiente. O chão do palco, preto, recebe três faixas de linóleo cinza claro, que serão desenroladas, uma por vez, indo de um lado em direção ao outro do palco. Cada uma das três faixas avança mais que a anterior, mas nenhuma delas completa a travessia.

Iluminadas por três faixas de luz em gradações diferentes, essas faixas são desenroladas pelo movimento dos próprios bailarinos, que se curvam, se levantam, escorregam, deslizam, indo e voltando pelos caminhos, como se fossem maré. Ajoelhados, navegando, os bailarinos realizam uma oração coreográfica, em direção à luz. Sincera, não exatamente apostólica, mas delicadamente devota. Mãos prostradas, olhando para a luz, à espera de uma intercessão, numa atitude de respeito que nos revela, em suma, o tom geral de por+vir: reverenciando a um só tempo passado e futuro.

 

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