Eu por detrás de Mim | Companhia de Danças de Diadema
Entre o caótico e o religioso, o elenco da Cia de Danças de Diadema se reflete e se desdobra, em trabalhosos exercícios cênicos que retratam a experiência da busca de um indivíduo por seu verdadeiro eu, o “Eu por detrás de Mim”, que dá nome à coreografia de Ana Bottosso criticada no Da Quarta Parede.
Em 2015, as comemorações dos 20 anos da Cia de Danças de Diadema levou a companhia à criação de um espetáculo que, ao mesmo tempo relembra seu histórico e ecoa seu futuro — tratava-se de por+vir, com criações de nove coreógrafos que trabalharam com a companhia ao longo de seu percurso, numa interessante reflexão das capacidades de seu elenco e da potência e relevância da companhia. No repertório da companhia, segue-se a por+vir, Eu por detrás de Mim, que estreiou no Sesc Santo Amaro. Trabalho de longa data, idealizado e coreografado pela diretora da companhia, Ana Bottosso, Eu por detrás de Mim vem sendo preparado desde 2014, e chega aos palcos com o frescor e o vigor de uma companhia que mistura o melhor dos adjetivos “jovem” e “experiente”.
São duas as fontes que alimentam a construção da nova obra. Por um lado, a exposição Seu Corpo Na Obra, de Olafur Eliasson na Pinacoteca de São Paulo, em 2012, trouxe para a coreógrafa a questão dos espelhos, colocados em espaços inusitados pelo artista visual para criar uma sensação de participação dos indivíduos nas instalações. Da ideia do espelho vem um outro paralelo, esse literário, o conto O Espelho, centro da obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, que discute a questão da identidade e do reconhecimento a partir do ato de se olhar e se procurar num espelho.
A mensagem que Ana Bottosso transmite é a da multiplicidade das individualidades, que é tratada ao longo da obra por processos de espelhamento de movimento, mas também por estruturas de diferenciação dentro da repetição. Assim, na coreografia parecemos ver os bailarinos se desdobrarem, numa atividade constante de identificação de quem sejam eles próprios, quem sejam seus desdobramentos, e quem sejam os outros, em cena.
Contribui muito para essa realização o trabalho técnico dos bailarinos, que numa grande sintonia conseguem retratar os movimentos do grupo como se fossem individuais, e os movimentos individuais como se fossem de outros (ou de outras versões deles próprios). A luz é peça-chave na formação da obra, enquadrando as cenas e os processos de espelhamento, desde uma leve iluminação que parece sugerir uma penteadeira, até os strobos que ampliam os reflexos dos corpos para toda a sala do teatro.
No começo da obra, uma sequencia de breves blackouts já anuncia a questão da repetição e dos desdobramentos, e a cada vez que enxergamos a cena, há algo que continua e algo que nela se altera. Mas tratam-se de alterações tão bem marcadas que pontuá-las fica difícil. Tentamos seguir a quantidade de bailarinos que, numa linha, vai aumentando. E, de repente, há outros bailarinos ao fundo ou à frente do palco. Na luz seguinte, a linha continua, mas já não sabemos quantos eram e quantos são agora, nem se os outros se moveram, se trocaram de lugar, ou se permanecem parados.
O jogo da identificação é bem programado pela coreografia e bem executado pelo elenco e, em sua maior parte, faz prova de um frescor e de uma originalidade que tratam bem a proposta temática. Mas há alguns poucos excessos que distraem da realização da obra. O primeiro deles ocupa toda a duração do espetáculo: a platéia é recebida na sala por uma bailarina sentada numa cadeira, e de costas; quando a obra começa, a bailarina sai da cadeira e busca, entre as pessoas da plateia, uma que ocupará o seu lugar no palco, durante todo o espetáculo. A estrutura faz sentido, mas não tem nada de original, e falha ao comprometer a percepção contínua do espetáculo pela plateia, que tem essa pessoa de fora (mal-) colocada dentro da cena. Ainda que a pessoa e a cadeira sejam usadas contundentemente pelos bailarinos em algumas ocasiões, ela nada acrescenta, e de fato causa um estranhamento, sobretudo visual, do indivíduo que se destaca da harmonização dos bailarinos.
O segundo aspecto de distração está ligado a essa harmonização visual, e se coloca nos figurinos da obra. Se por um lado a ideia dos tecidos brilhantes e prateados faz uma boa referência ao espelho e sua reflexão, proposta e execução não se encontram, e os figurinos ficam entre ternos largos e pijamas desconfortáveis que, em costuras enrugadas e franzidas, excessivamente marcadas pelo tecido reflexivo contra a luz, ao invés de remeter à noção do espelho, acabam tirando a atenção da movimentação e da qualidade de movimentação da obra.
Ainda que ambos esses casos de excesso partam de propostas sinceras da obra, e justas ao tema, é sua execução que compromete o resultado do todo: naquela cadeira onde poderíamos nos imaginar, passamos a ver, constantemente, aquele outro indivíduo da plateia. Descaracterizado do conjunto, ele não representa diretamente nem os bailarinos nem as outras pessoas do público, nem “eu”, nem “eles”, mas um terceiro elemento que é difícil encaixar na equação, já bastante complexa, do que é proposto.
Mais para o fim da obra, a massa do figurino se dissolve um pouco, e passamos a ver mais dos corpos dos bailarinos, o que soluciona o aspecto robótico-futurista da roupa com um teor de humanidade que, em outros aspetos, transborda no espetáculo. De certa forma, o trunfo de Eu por detrás de Mim é justamente conseguir ultrapassar a rigidez do espelho (e dos figurinos), da neutralidade facial, da acuidade técnica do elenco, da intensa iluminação, para chegar àquilo que se reflete no espelho: o indivíduo, e sua busca por si mesmo.
Sem recorrer a uma adaptação, o espetáculo consegue transportar para a cena o processo da experiência esotérica que é apresentada por Guimarães Rosa em seu conto, em que um narrador não identificado conversa com um leitor quase como se conversasse consigo mesmo, enquanto busca, dentro do espelho, seu verdadeiro eu. O processo é complexo, demandando o esforço por vezes doloroso de se despir de sua própria identidade, num procedimento entre o religioso e o caótico, de imitação e despojamento, que também se replica na coreografia de Ana Bottosso. Há algo como uma esperança, uma iluminação final e reveladora, mas quando ela chega, o processo já foi tao intenso, demandando tanto (dos bailarinos e do público), que parecemos nos apegar mais ao desdobramento do que à revelação, que dura só um instante, mas que permite, nesse instante, um vislumbre do verdadeiro eu, o eu por detrás de mim.