Críticas

Dança Sinfônica | Grupo Corpo

Na comemoração de seus 40 anos, em 2015, o Grupo Corpo nos apresentou Dança Sinfônica, que agora volta aos palcos em mais uma turnê. Olhando para o passado da companhia, uma quantidade enorme de referências se mistura à (grande) promessa de futuro da companhia, que valoriza todo o trabalho já feito, nos deixando à espera daqueles que ainda virão.

Criada para a comemoração dos 40 anos do Grupo Corpo, Dança Sinfônica volta a São Paulo para uma temporada, dessa vez acompanhada de Lecuona, obra de 2004 e uma das reconhecidas favoritas do público, já fiel, da companhia mineira. O caráter celebrativo perpassa pela obra em seus diversos níveis, desde a ocupação cenográfica do espaço, passando sobretudo pela música que Marco Antônio Guimarães compôs para a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, e desaguando nos movimentos da dança, que retratam o estilo do coreógrafo, tons específicos de diversas obras da história da companhia, e nos colocam em contato com esse projeto de longa duração que é a estética do Grupo Corpo.

Em veludo vermelho, as pernas do palco emolduram a cena, e atingem em cheio no torso das bailarinas, espalhando o emotivo tom de solenidade de Dança Sinfônica. Trata-se de um momento sério, entremeado pela alegria e pela leveza que também se fixaram como marcas da companhia mineira. A música retrata esse aspecto, intercalando às composições originais e evocativas executadas pelos 90 integrantes da Filarmônica, intervenções de integrantes do Uakti, que também nos mostram a cara — e o som — desse compositor já parceiro do Corpo.

Uma preferência pelo ríspido, pelo movimento contínuo, por duos e trios cujas formações são frequentemente inconstantes — se alternando na frente de nossos olhos —, e que mostram a aplicação de uma técnica de variação dentro do grupo: sistema reconhecível em diversas das coreografias de Pederneiras, que ocupa o olhar em múltiplas direções, e aposta frequentemente numa cena preenchida de elementos em diálogo ou oposição. Os bailarinos atravessam a cena em linhas que se desdobram, se transformam em outras linhas, apontando para outras direções. A unidade do conjunto é, há muito, um dos pontos fortes dos trabalhos que apresentam, carregando, como poucas outras companhias, uma perceptível qualidade de ensaio e de acabamento das obras — que são poucas, frente a certos esquemas atuais de produção em dança, sobretudo em companhias de repertório, mas que aqui remetem ao apreço pela precisão, pela qualidade artística, e pelo primor. Todos esses, marcas do Corpo.

Outras formas de marcas do Corpo são visíveis em Dança Sinfônica. Ainda que qualquer pessoa possa apreciar a qualidade do trabalho, sem nunca antes ter visto outra obra do grupo, aqueles que tiveram o prazer de acompanhar mais etapas dessa trajetória podem ligar os pontos das homenagens que se prestam sobre o palco. E nem se trata tanto da imagética do painel de fundo, ocupado por centenas de fotografias dos diversos elencos, obras, e artistas que se envolveram com esse grande e extenso projeto que é o Corpo: esse painel, disfarçado na penumbra durante a maior parte da obra, só é realmente apreciável, ainda que de longe, quando o espetáculo se encerra e vêm os agradecimentos (que são tanto dos bailarinos quanto do público).

Em um outro ponto de convergência, e com muito mais interesse, acompanhamos nas diversas danças que são colocadas em cena, referências a outras obras da companhia. Impossível não se contagiar com os braços e pernas que se lançam e parecem buscar e trazer de volta coreografias como Bach, 21, Parabelo e Triz. O espaço se risca e se preenche dessas referências diversas e múltiplas dos trabalhos da companhia. Apontam, mais que isso, para uma característica comum, um estilo coreográfico, um aspecto estético que percorre a obra de Pederneiras e que aqui mistura as menções pontuais às características contínuas, que delineiam aquilo que reconhecemos na história do Corpo e que se faz e se refaz nos trabalhos da companhia.

Essas muitas referências vêm ao palco como diversas vozes, como os diversos instrumentos da orquestra, que competem e se harmonizam em cena. Assim como o trabalho do maestro, o trabalho do coreógrafo de Dança Sinfônica é o de coordenar essas múltiplas possibilidades. Tal qual as mãos de um maestro, estabelecendo um pulso norteador, vemos no palco uma cena que se repete algumas vezes, pautando o todo da coreografia. Em sua leveza e lirismo, ela parece acalmar as diversas vozes que falam, e bem alto, durante as muitas danças. Trata-se de um duo, com a bailarina vestida diferente daquelas dos conjuntos, sem o veludo vermelho solene, e que flutua pelo palco, às vezes carregada, às vezes deslizando. Recolhida nos braços de seu parceiro, ela mostra o quando de sua força e grandeza é preciso para demonstrar essa fragilidade, essa delicadeza quase aquática que nos transporta ao mesmo tempo para outros duos de Pederneiras, mestre do lirismo a dois, sobretudo o duo principal de Sem Mim, mas que ao mesmo tempo carrega algo de continuidade, as linhas retas e quase severas da obra anterior do grupo, Triz, e nos seduz  apontando por aquilo que ainda está por vir.

Nesse sentido também se colocam as corridas dos bailarinos pela cena: nesse lugar de olhar pra trás e admirar tudo aquilo que já fizeram, eles parecem encontrar a força propulsora para seguir em frente, para o que quer que venha em 2017, ano em que esperamos nova estréia do corpo (que, de costume, faz novas criações em anos ímpares). Em questões de espera, nos acostumamos a esperar grandes coisas do coreógrafo: composições detalhadas e detalhistas, físicas e musicais, que mostram diferentes caras do Brasil em associações de bailarinos, cenógrafos, músicos, figurinistas, iluminadores, e tantos técnicos e artistas envolvidos na criação dessas sinfonias dançadas que se tornaram marca do Grupo Corpo.

Dança Sinfônica é um título verdadeiro, ainda que pouco potente. Na sinfonia do Corpo, os instrumentos são os corpos dos muitos artistas que se envolvem na produção; e a partitura dessa melodia, regida pelas mãos dos Pederneiras e por tantas outras que a eles se associam, é carregada de toda uma história de escritas coreográficas, compiladas, remodeladas, e recolocadas em cena, numa obra que olha pra trás, sem ser passadista; que aponta esses 40 anos pra falar sobre tudo aquilo que já se fez, sugerindo tudo aquilo que ainda virá.

 

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